quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Relatório de Leitura e Debate - 31/10, "Sobre a autoridade", de Friedrich Engels

Relato da Reunião de discussão do texto "Sobre a autoridade", de Friedrich Engels, por Danilo Uler e Thiago Barison

Síntese do debate do grupo
31/10/13

1. Textos-base
ENGELS, Friedrich. Prefácio à edição alemã de 1892. In: ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Trad. B. A. Schumann. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 345-58.
NETTO, José Paulo. Apresentação. In: ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Trad. B. A. Schumann. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 9-35.
ENGELS, Friedrich. Sobre a autoridade. Disponível em http://www.marxists.org/portugues/marx/1873/03/autoridade-pt.htm.
HOBSBAWM, Eric. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. In: HOBSBAWM, Eric. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo. Trad. Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 88-97.


2. Caso clássico

Existe um forte indício pelo qual a ideia inicial de “caso clássico” tenha surgido inicialmente nesta obra de Engels – A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, influenciando decisivamente a elaboração do método marxista. Engels estuda o industrialismo inglês enquanto imagem do que será o desenvolvimento ulterior do capitalismo alemão[1] e do restante do mundo. A Inglaterra do século XIX era o que de mais avançado havia, no que diz respeito à generalização da produção capitalista.
O expediente do caso clássico se impõe nos modos de fazer ciência: as formas mais evoluídas explicam as menos evoluídas. Isto tem importância crucial na crítica revolucionária da humanidade: evita um passado explicando e comandando o presente, cristalizando este (“sempre foi assim, sempre será”). Como se o desenvolvimento dos fatos passados tivessem que, necessariamente, levar à forma presente, justificando-se "historicamente" o modo como o fenômeno atualmente se apresenta; a noção de que o mais simples explica o mais complexo. O legado marxista inverte esta lógica, dizendo que a
sociedade burguesa é a organização histórica da produção mais desenvolvida, mais diferenciada. As categorias que exprimem suas condições, a compreensão de sua própria organização a tornam apta para abarcar a organização e as relações de todas as formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada, e cujos vestígios, não ultrapassados ainda, leva arrastando, enquanto tudo o que fora antes apenas indicado desenvolveu, tomando toda sua significação etc. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que nas espécies animais inferiores indica uma forma superior, não pode, ao contrário, ser compreendida senão quando se conhece a forma superior. A economia burguesa fornece a chave da economia antiga etc. Porém, não conforme o método dos economistas, que fazem desaparecer todas as diferenças históricas e vêem a forma burguesa em todas as formas de sociedade [...][2].
Por oportuno, convém mencionar uma analogia deste imperativo epistemológico com a experiência brasileira recente: a greve dos petroleiros de 1995. A maneira truculenta e antidemocrática com que o Judiciário se posicionou frente àquele movimento de trabalhadores (para não se falar da invasão das refinarias pelo Exército) permite-nos tratar esta experiência como um caso clássico, assim como o foram os mineiros na Inglaterra de 1984-5 e os controladores de voo nos EUA de 1981. Se o metroviário de São Paulo posteriormente intentar uma paralisação, o caso dos petroleiros lhe dirá: “De te fabula narratur!” [A história é a teu respeito!].


2. Moralidade da grande indústria

Engels chama atenção no Prefácio de 1892 para uma sofisticação da dominação burguesa. No fito de evitar a “fadiga” decorrente de choques desnecessários com os trabalhadores, a evolução da indústria soterra os “pequenos furtos”, o truck system[3], sonegação nas medidas (quando a produção se dá por peças/produtos).
As greves e os sindicatos, antes “invenções do diabo”, passam a ser vistos com naturalidade. Greve pode ser um bom negócio, desde que efetivada em momento oportuno – baixa do comércio.
Os pequenos industriais que retiram grande parte de seus lucros destas velhacarias são engolidos pelos grandes, que adotam a “moralidade”. Não, os capitalistas não ficaram mais bonzinhos; a moralidade como necessidade própria do processo de concentração de capital. Que tendência é esta que perpassa o mito da responsabilidade ambiental e social das empresas!
Desta reflexão decorre um rico debate. Assume relevo a mensagem contida no Prefácio da 1ª edição alemã d’O Capital, que evidencia o papel das estruturas.
Não foi róseo o colorido que dei às figuras do capitalista e do proprietário de terras. Mas, aqui, as pessoas só interessam na medida em que representam categorias econômicas, em que simbolizam relações de classe e interesses de classe. Minha concepção do desenvolvimento da formação econômico-social como um processo histórico-natural exclui, mais do que qualquer outra, a responsabilidade do indivíduo por relações, das quais ele continua sendo, socialmente, criatura, por mais que, subjetivamente, se julgue acima delas[4].
Estamos falando, então, de “personificações” do capital e do trabalho, como se o capitalista e o trabalhador fossem suportes das estruturas de extração de mais-valia. Esta perspectiva afasta, por exemplo, qualquer explicação de viés individualista para os fenômenos sociais. Exemplo claro é o dos torturadores: querer colocar estes indivíduos como monstros, encerrando-se aí o entendimento, acaba por desviar a atenção da totalidade.
Há que se notar que esta reflexão marca a passagem do Livro I para o Livro III d’O Capital. Como a abstração já processou os conceitos determinantes (Althusser diria conceitos abstrato-formais[5]), já é possível entender uma realidade empírica, com o instrumental teórico já consolidado.


3. Sufrágio universal

Ainda no prefácio de 1892, Engels destaca o papel que as vitórias eleitorais cumprem ao colocar o operário na cena política europeia. É justamente aqui que se trava um profundo debate. Haveria uma fé excessiva no sufrágio? Um erro de prognóstico? Pois parecia certo para Engels que o movimento operário poderia se desenvolver a partir das eleições. E foi, de fato, o que ocorreu. Mas, por que não cresceu revolucionariamente? É dizer, toda tentativa eleitoral terá de, necessariamente, redundar em reformismo, adequando-se e se acomodando às estruturas de dominação?
Pode-se retomar uma discussão do grupo travada alhures. Inferindo que a república democrática é a forma mais sofisticada de dominação, onde a riqueza exerce mais segura e indiretamente seu poder, Engels diz que é nela que será travada a “última e definitiva batalha entre o proletariado e a burguesia”.
Enquanto a classe oprimida – no nosso caso, o proletariado – não está madura para promover ela própria a sua emancipação, a maioria dos seus membros considera a ordem social existente como a única possível e, politicamente, forma a cauda da classe capitalista, a sua ala da extrema esquerda. Entretanto, na medida em que vai amadurecendo para a auto-emancipação, constitui-se como um partido independente e elege os seus próprios representantes e não os dos capitalistas. O sufrágio universal é, assim, o índice do amadurecimento da classe operária. No Estado actual, não pode, nem poderá jamais, ir além disso; mas é o suficiente. No dia em que o termómetro do sufrágio universal registrar para os trabalhadores o ponto de ebulição, eles saberão – tanto quanto os capitalistas – o que lhes cabe fazer[6].
Ou seja, Engels identifica as tendências da política que correspondem ao grau de desenvolvimento econômico capitalista. Estas tendências colocam a armadilha do terreno eleitoral para a classe trabalhadora, mas terreno que esta terá de transitar, elegendo seus próprios representantes e amadurecendo com isso. A sugestão de Engels parece ser de que a república democrática não bastará, sendo necessário sua suplantação. Ou seja, o sufrágio figura como “termômetro de ebulição”, cujo resultado terá de ser aproveitado pelo proletariado para o revolucionamento das sociedades. Enfim, um debate que permanece aberto, sendo preciso ainda procurar respostas em Lenin: inflexibilidade estratégica (a insurreição é inegociável) e flexibilidade na tática (identificando como e quando transitar no terreno eleitoral).


4. Sobre a autoridade

Existe um grande mérito neste texto: uma crítica ao modo organizativo e à visão estratégica típica do anarquismo. Demarca o ponto de vista marxista em relação às teses vigentes através das quais era preciso abolir a autoridade imediatamente (como se o inimigo fosse a autoridade-pessoa). Olvida a necessária organização que demanda a revolução, posto que inserida na luta de classes.
Na leitura deste texto, há que se evitar futurologia. A sociedade socialista superior (ou comunista) não será isto, nem aquilo. Afinal, os homens somente colocam os problemas que podem resolver em cada momento histórico. Uma determinação negativa é diferente de prever o que será, sendo possível dizer que não haverá mercadoria, classes sociais, etc.
Mas o debate de Engels evita purismos e a ingenuidade destas correntes que identificam a autoridade abstratamente, como um mal por princípio. O parágrafo final sintetiza bem o combate teórico.
Porque é que os anti-autoritários não se limitam a erguer-se contra a autoridade política, contra o Estado? Todos os socialistas concordam em que o Estado político e com ele a autoridade política desaparecerão como conseqüência da próxima revolução social, ou seja, que as funções públicas perderão o seu caráter político e se transformarão em simples funções administrativas protegendo os verdadeiros interesses sociais. Mas os anti-autoritários pedem que o Estado político autoritário seja abolido de um golpe, antes mesmo que se tenham destruído as condições sociais que o fizeram nascer. Pedem que o primeiro ato da revolução social seja a abolição da autoridade. Já alguma vez viram uma revolução, estes senhores? Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que se possa imaginar; é o ato pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra por meio das espingardas, das baionetas e dos canhões, meios autoritários como poucos; e o partido vitorioso, se não quer ser combatido em vão, deve manter o seu poder pelo medo que as suas armas inspiram aos reacionários. A Comuna de Paris teria durado um dia que fosse se não se servisse dessa autoridade do povo armado face aos burgueses? Não será verdade que, pelo contrário, devemos lamentar que não se tenha servido dela suficientemente? Assim, das duas uma: ou os anti-autoritários não sabem o que dizem, e, nesse caso, só semeiam a confusão; ou, sabem-no, e, nesse caso, atraiçoam o movimento do proletariado. Tanto num caso como noutro, servem à reação.




[1] “Se as condições de vida do proletariado não chegaram, na Alemanha, a atingir a forma clássica que alcançaram na Inglaterra, temos, no fundo, a mesma ordem social que, mais cedo ou mais tarde, se alçará ao mesmo extremo atingido do outro lado do canal da Mancha, salvo se a nação tomar a tempo medidas capazes de dotar o conjunto do sistema social de uma base nova”. ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, p. 42.
[2] MARX, Karl. Introdução à Contribuição à crítica da economia política. In: MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. 2.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 262.
[3] Sistema que afugenta o trabalhador ao empregador, pois aquele trabalha mas contrai mais dívidas, posto que somente pode comprar utensílios deste (ou mesmo tem de pagar para utilizar ferramentas ou uniformes).
[4] MARX, Karl. Prefácio da 1ª edição. In: MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I, v. 1. Trad. Reginaldo Sant’Anna. 30. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 15. Grifos não originais.
[5] ALTHUSSER, Louis. Sobre el trabajo teórico: dificultades y recursos. Barcelona: Editoral Anagrama, s/d.
[6] ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. H. Chaves. Lisboa: Editorial Presença, s/d, p. 229-30. Grifos não originais.






No texto "Sobre a autoridade", escrito em 1873, Friedrich Engels dialoga com "alguns socialistas" que se opõem a autoridade em geral e sob quaisquer circunstâncias: opõem-se como numa cruzada contra o "princípio da autoridade". O autor, diga-se logo, parece dialogar diretamente com Bakhunin, que, segundo se aventou durante nossa discussão, teria acusado a corrente "teutônico-semita" (em referência nos seus próprios termos a Marx e Engels) da Internacional Comunista de querer fazer dela algo como um "Estado".
Primeiro, Engels explica que a autoridade está ligada à própria organização social. Dá exemplos de situações que a exigem, como numa fábrica, numa ferrovia e num barco em alto mar. Desfaz no debate, assim, um primeiro engano: o terminológico. Pois, segundo conta, muitos companheiros a quem apresentara tais exemplos respondiam-lhe que, de fato, tal ou qual organização e subordinação dos indivíduos a ela é imprescindível, mas que a isso chamariam "encargo". Ao que Engels arremata com humor: "Crêem êsses senhores que modificam a coisa modificando-lhe o nome." (in: Textos volume II. São Paulo: Edições Sociais, 1976, p. 121).
Isso porque Engels relativiza o par autoridade/autonomia segundo as diferentes fases do desenvolvimento social. E, nesse sentido, pondo-se totalmente do ponto de vista de seus contendores, afirma:
"Se os autonomistas se limitassem a dizer que a organização social do futuro restringirá a autoridade até o limite estrito em que as condições da produção a tornem inevitável, poderíamos entender-nos; mas longe disso, permanecem cegos para todos os fatos que tornam a coisa necessária e arremetem furiosamente contra a palavra.", (Ibidem).
Por fim, polemiza, e aí mais claramente, com a tese que se veio a circunscrever no campo do "anarquismo", segundo a qual dever-se-ia exigir como primeiro ato da revolução a abolição do Estado político autoritário. Com isso, dá as indicações para a futura divisão do comunismo em duas fases: a idéia que Lênin, na obra O Estado e a Revolução, procurou esclarecer de que numa primeira fase revolucionária o Estado político como expressão da dominação do proletariado persiste e que, somente após pôr fim à base social que engendra essa forma política e a própria autoridade, permitir o "definhamento" do Estado, que deixa de existir enquanto forma política e cujas funções tornar-se-iam, segundo os termos aqui indicados, "simples funções administrativas, destinadas a zelar pelos verdadeiros interesses sociais". Importa notar ainda que essa pequena reflexão de Engels dialoga com a "Crítica ao Programa de Gotha", de Marx, escrito pouco depois, em 1875.
Essa linha de argumentação suscitou-nos o retorno à reflexão sobre o uso e a permanência, bem como sobre a extinção, da forma jurídica nas diferentes fases da transição socialista.
A lição clara que se tira é a crítica ao procedimento de se pretender aplicar ao momento presente algo que resultaria de um longo processo histórico. De se pretender deduzir uma postura política concreta, o “autonomismo”, de uma análise abstrata sobre a dominação em geral.
Isso vai ao encontro da reflexão feita na semana anterior, em cima do texto “O Socialismo Jurídico”, em que concluímos conjuntamente que o caráter acomodador ou desestabilizador de uma bandeira de luta ou palavra de ordem não determinado por sua dedução lógica do seio da análise do modo de produção. Senão, diferentemente, o que determina se uma bandeira de luta assume um caráter desestabilizador ou não é a correlação de forças entre as classes sociais em luta em cada momento, de sorte que reivindicações ainda que jurídicas das classes dominadas podem assumir um potencial que lhe transcende os limites lógicos e abstratos. Essa “análise concreta da situação concreta” das classes em luta, digamos assim, constitui o terreno da prática política.

Uma última reflexão que vale a pena registrar. A Crítica do Direito nega a persistência da forma jurídica uma vez que se supere o modo de produção capitalista. Fica a dúvida para aprofundamentos posteriores: trata-se isso de tomar a questão da persistência da forma jurídica como um “não-problema” ou negar a possibilidade de persistência seria tomá-lo e enfrentá-lo (“Crítica ao Programa de Gotha”)? Indo direto ao ponto: não há no texto de Engels sobre a autoridade a idéia contida de que qualquer forma de organização pressuporá a submissão da autonomia individual a ela? Que qualquer forma de organização social, pensando-se em termos de divisão do trabalho como a “dos produtores livremente associados” — termo recorrente n´O Capital — pressuporá a “democracia”, a igualdade de votos entre os produtores na decisão sobre a associação e sua respectiva forma de organização à qual se submeterão em seguida? Como se dá a “livre associação dos produtores” sem a mediação de alguma forma eu não sei — e, ao que nos ensina a Crítica do Direito, a democracia do sujeito que vota e se submete à maioria dos votos dos outros sujeitos corresponde à forma jurídica. Mas insistimos em colocar essa questão como um problema porque, como bem disse Engels, não adianta mudar o nome para modificar a coisa...

Sobre Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã

Relato da reunião sobre o texto de F. Engels, "Ludwig feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã", por Thiago Arcanjo Calheiros de Melo.

O presente texto de Engels foi publicado pela primeira vez em 1886 e teve como motivação imediata o escrito de certo pensador alemão, o livro Ludwig Feuerbach, de C. N. Starck (1885). Entretanto, mais do que tratar explicitamente da análise de Starck com relação à Feuerbach (que, de todo, é mais uma crítica pobre realizada ao pensamento feuerbachiano, conforme aponta o próprio texto), Engels terminou por esclarecer de forma direta que relação houve entre a teoria desenvolvida por ele e Marx (o materialismo histórico-dialético) e o hegelianismo de esquerda, em especial, Ludwig Feuerbach (como ele mesmo diz, “por um momento, fomos todos feuerbachianos”).
            Nesse sentido, o texto bem delimita como Hegel, em suas grandes linhas, fora apreendido por Engels e, segundo este, por Marx, o que eleva o escrito a ter grande valor introdutório no que respeita à concepção do “marxismo”. Neste aspecto, o texto destaca de forma límpida e sem rodeios em que pontos a filosofia de Hegel era, de fato, revolucionária e, em que medida, era profundamente conservadora. Por assim dizer, Engels demonstra como a dialética de Hegel é traída pelo “sistema” que a própria filosofia hegeliana estabelece. Assim, se o primeiro movimento é de profunda superação de tudo que se estabelece, em seguida, um certo ponto inicial, a “idéia”, se torna a origem da qual tudo deriva, fechando, pois, um circuito de sistema.
            No interior dessa contradição é que Engels aponta Feuerbach como inflexão fundamental da filosofia àquele tempo. Ao se valer de uma visão materialista e da própria negatividade posta pela dialética hegeliana, Feuerbach põe de pé uma filosofia que tem no homem o próprio ponto de partida e o ponto “de chegada” de todo o mundo do homem: dá, aqui, um passo fundamental na resolução da relação filosófica de longa data entre “ser e pensar”. Seria, por acaso, a idéia que faz nascer o homem, ou este é que cria aquela? Seria o homem uma criação de deus, o este uma criação dos homens? Teria a história necessariamente um fluxo contínuo e progressivo, uma filosofia da história, ou cada momento histórico é em todos os seus aspectos construídos pela própria ação humana? Essas questões, porém, Feuerbach não desenvolve a partir do próprio pressuposto que colocara, mantendo-se, pois, nos limites de uma filosofia idealista que tudo resolve na religião e no amor, ou melhor, na religião do amor.
            Nesse passo, o texto é extremamente feliz e atual em deixar claro (com uma clareza típica do grande pensador que foi Engels) como idealismo não tem nada a ver com “ideais nobres que os homens perseguem”, nem como “materialismo” não tem nada que ver com pecados e luxúrias materiais que homens materialistas perseguem.
            A seguir, alguns trechos que destacam os pontos acima e como se diferencia, tanto do idealismo como do materialismo vulgar, a teoria desenvolvida por Engels e Marx (os trechos em negrito são nossos e pretendem realçar as partes mais decisivas do texto).
            O ensaio de Engels está dividido em quatro partes, as quais, de maneira didática e com os olhos de hoje, pode-se assim separar: I – A herança da filosofia de Hegel; II – a superação limitada realizada por feuerbach / críticas às concepções correntes de materialismo e idealismo; III – o idealismo de feuerbach e IV – a concepção de história segundo Marx e Engels .
            Texto completo nos links:
http://www.marxists.org/portugues/marx/1886/mes/fim.htm http://www.marxists.org/portugues/marx/1888/02/21.htm
           
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Trechos de Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã

“Tal como em França no século XVIII, também na Alemanha no século XIX a revolução filosófica preludiou o desmoronamento político. Mas como ambas tiveram um aspecto diverso! Os franceses em luta aberta com toda a ciência oficial, com a Igreja, frequentemente também, com o Estado; os seus escritos impressos além-fronteiras, na Holanda ou em Inglaterra, e eles próprios demasiado frequentemente quase no ponto de irem parar à Bastilha. Os alemães, em contrapartida — professores, mestres da juventude colocados pelo Estado, os seus escritos [como] manuais reconhecidos, e o sistema que remata todo o desenvolvimento, o de Hegel, elevado mesmo, em certa medida, ao nível de régia filosofia de Estado prussiana! E podia a revolução esconder-se por detrás destes professores, por detrás das suas palavras pedanto-obscuras, nos seus períodos pesados, maçadores? Não eram, então, precisamente as pessoas que naquela altura passavam por representantes da revolução — os liberais — os adversários mais aguerridos dessa filosofia que desarranja as cabeças? O que, porém, nem os governos nem os liberais viram, viu-o já em 1833, pelo menos, um homem, mas é certo que se chamava Heinrich Heine.”

“Nenhuma proposição filosófica concitou tanto o agradecimento de governos limitados e a cólera de liberais igualmente limitados como a famosa proposição de Hegel:

«Tudo o que é real, é racional, e tudo o que é racional, é real.»(2*)

Isto era, pois, palpavelmente, a santificação de todo o existente, a consagração filosófica do despotismo, do Estado policial, da justiça de gabinete, da censura. E tal como Frederico Guilherme III assim o entendeu, assim [o entenderam] os seus súbditos. Mas, em Hegel, de modo nenhum tudo aquilo que existe é também sem mais real. Para ele, o atributo da realidade [Wirklichkeit] cabe apenas àquilo que, simultaneamente, é necessário [notwendig];

«a realidade mostra-se no seu desdobramento como [sendo] a necessidade»(3*)

(...) uma medida governamental qualquer — Hegel dá mesmo o exemplo «de uma certa instituição fiscal»(4*) — para ele, de modo nenhum passa, portanto, também sem mais por real. O que, porém, é necessário, mostra-se em última instância também como racional, e, aplicada ao Estado prussiano daquela altura, a proposição de Hegel quer apenas dizer: este Estado é racional, corresponde à razão, na medida em que é necessário; e se ele, no entanto, nos parece mau, mas apesar da sua maldade continua a existir, a maldade do governo encontra a sua justificação e a sua explicação na correspondente maldade dos súbditos. Os prussianos daquela altura tinham o governo que mereciam.

Ora, segundo Hegel, a realidade não é de modo nenhum um atributo que caiba a um estado de coisas social ou político dado em todas as circunstâncias e em todos os tempos. Pelo contrário. A república romana era real, mas o império romano que a suplantou também. A monarquia francesa, em 1789, tinha-se tornado tão irreal, isto é, tão desprovida de toda a necessidade, tão irracional, que tinha de ser aniquilada pela grande revolução, de que Hegel sempre fala com o maior entusiasmo. Aqui, portanto, a monarquia era o irreal, a revolução o real. E, assim, no curso do desenvolvimento, todo o anteriormente real se torna irreal, perde a sua necessidade, o seu direito de existência, a sua racionalidade; para o lugar do real que está a morrer entra uma nova realidade, [uma realidade] viável — pacificamente, se o antigo é suficientemente inteligente para morrer sem resistência; pela força, se ele se barrica contra essa necessidade. E, assim, a proposição de Hegel inverte-se, pela própria dialéctica de Hegel, no seu contrário: tudo o que no domínio da história humana é real torna-se, com o tempo, irracional, é portanto já por destinação irracional, está de antemão contaminado de irracionalidade; e tudo o que na cabeça dos homens é racional está destinado a tornar-se real, por muito que isso também possa contradizer a realidade aparente existente. A proposição da racionalidade de todo o real resolve-se, segundo todas as regras do método de pensar de Hegel, nesta outra: tudo o que existe merece perecer.(5*)

Mas, a verdadeira significação e o carácter revolucionário da filosofia de Hegel (temos que nos limitar aqui a [considerá-la] como o fecho de todo o movimento desde Kant) residia, precisamente, em que ela, de uma vez por todas, deu o golpe de misericórdia no carácter definitivo de todos os resultados do pensar e do agir humanos. A verdade, que se tratava de conhecer na filosofia, não era mais para Hegel uma colecção de proposições dogmáticas prontas que, uma vez encontradas, apenas requeriam ser aprendidas de cor; a verdade residia agora no processo do próprio conhecer, no longo desenvolvimento histórico da ciência, que se eleva de estádios inferiores do conhecimento para [estádios] sempre superiores, sem, porém, chegar alguma vez, pelo achamento de uma pretensa verdade absoluta, ao ponto em que ela não pode avançar mais, em que não lhe resta mais do que ficar de braços cruzados e olhar de boca aberta para a verdade absoluta alcançada. E isto no domínio do conhecimento filosófico, assim como no de qualquer outro conhecimento e no do agir prático. Tão-pouco quanto o conhecimento, pode a história encontrar um fecho pleno num estado ideal perfeito da humanidade; uma sociedade perfeita, um «Estado» perfeito, são coisas que só podem existir na fantasia; pelo contrário, todos os estados históricos que se seguem uns aos outros são apenas estádios transitórios no curso de desenvolvimento sem fim da sociedade humana do inferior para o superior. Cada estádio é necessário, portanto, está justificado para o tempo e as condições a que deve a sua origem; mas torna-se caduco e injustificado face a novas, a superiores, condições que gradualmente se desenvolvem no seu próprio seio; tem de dar lugar a um estádio superior ao qual, por seu lado, voltará a chegar a vez do declínio e da decadência. Assim como a burguesia, através da grande indústria, da concorrência e do mercado mundial, dissolve na prática [praktisch] todas as instituições estáveis e veneráveis pela idade, também esta filosofia dialéctica dissolve todas as representações de verdade absoluta definitiva e os seus correspondentes estados absolutos da humanidade. Perante ela não subsiste nada de definitivo, de absoluto, de sagrado; ela mostra a transitoriedade de tudo e em tudo, e nada subsiste ante ela senão o ininterrupto processo do devir e do perecer, da ascensão sem fim do inferior ao superior, de que ela própria é mero reflexo [Widerspiegelung] no cérebro pensante. Ela também tem, é certo, um lado conservador: ela reconhece a justificação de determinados estádios do conhecimento e da sociedade para o seu tempo e circunstâncias; mas também só isso. O conservadorismo desta maneira de ver é relativo, o seu carácter revolucionário é absoluto — é o único absoluto que ela admite.

Mas, o que, de facto, há aqui a dizer, é isto: o desenvolvimento acima [referido] não se encontra com esta agudeza em Hegel É uma consequência necessária do seu método, que ele próprio porém, nunca tirou com esta expressividade. E isto, sem dúvida, pela simples razão de que ele estava obrigado a fazer um sistema, e um sistema de filosofia, segundo as exigências tradicionais, tem de se rematar por uma qualquer espécie de verdade absoluta.
A doutrina de Hegel no seu conjunto deixava, como vimos, abundante espaço para o alojamento das mais diversas visões de partido práticas; e, na prática, na Alemanha teórica daquela altura, havia, antes do mais, duas coisas: a religião e a política. Quem pusesse o peso principal no sistema de Hegel podia ser bastante conservador em ambos os domínios; quem visse o principal no método dialéctico podia, tanto religiosa como politicamente, pertencer à oposição mais extrema.(...)

Não insistiremos mais sobre este lado do processo de decomposição da escola de Hegel. Mais importante é para nós isto: a massa dos jovens-hegelianos mais decididos foi remetida, pelas necessidades práticas da sua luta contra a religião positiva, para o materialismo anglo-francês. E aí entrou em conflito com o seu sistema de escola. Enquanto o materialismo apreendia a Natureza como o unicamente real, esta representava, no sistema de Hegel, apenas a «exteriorização» [Entäusserung] da Ideia absoluta, por assim dizer, uma degradação da Ideia; em todas as circunstâncias, o pensar e o seu produto de pensamento — a Ideia — são aqui o originário, a Natureza [por sua vez é] o derivado que, em geral, só existe por condescendência da Ideia. E era à volta desta contradição que melhor ou pior, se andava.

Veio então a Wesen des Christenthums(9*) de Feuerbach. Com um só golpe, pulverizou a contradição, ao pôr de novo no trono, sem rodeios, o materialismo. A Natureza existe independentemente de toda a filosofia; ela é a base sobre a qual nós, homens, nós mesmos produtos da Natureza, crescemos; fora da Natureza e dos homens não existe nada, e os seres superiores que a nossa fantasia religiosa criou são apenas o reflexo [Ruckspiegelung] fantástico do nosso próprio ser. O encantamento foi quebrado; o «sistema» foi feito explodir e atirado para o lado, a contradição, porque existente apenas na imaginação, foi resolvida. — Uma pessoa tem, ela própria, que ter vivido o efeito libertador deste livro, para fazer uma ideia disso. O entusiasmo foi geral: momentaneamente fomos todos feuerba-chianos. Quão entusiasticamente Marx saudou a nova concepção e quanto ele — apesar de todas as reservas críticas — foi por ela influenciado, pode ler-se na Heilige Familie.(10*)

(...)a escola de Hegel estava dissolvida, mas a filosofia de Hegel não tinha sido criticamente vencida. Strauss e Bauer pegaram cada um dos seus lados e viraram-no polemicamente contra o outro. Feuerbach quebrou o sistema e atirou-o simplesmente para o lado. Mas não se vence uma filosofia, simplesmente com o declará-la falsa. E uma obra tão poderosa como a filosofia de Hegel, que teve uma influência tão grande sobre o desenvolvimento espiritual da nação, não se deixou pôr de lado pelo facto de se a ignorar sem mais. Ela tinha de ser «superada» no seu próprio sentido, isto é, no sentido em que a sua forma fosse criticamente aniquilada, mas o novo conteúdo através dela ganho fosse salvo.

II

A grande questão fundamental de toda a filosofia, especialmente da moderna, é a da relação de pensar e ser.(...)

A questão da posição do pensar em relação ao ser — que, de resto, na escolástica da Idade Média também desempenhou o seu grande papel —, a questão: que é o originário, o espírito ou a Natureza? — esta questão agudizou-se, face à Igreja, nestes [termos]: criou deus o mundo ou existe o mundo desde a eternidade?

Conforme esta questão era respondida desta ou daquela maneira, os filósofos cindiam-se em dois grandes campos. Aqueles que afirmavam a originariedade do espírito face à Natureza, que admitiam, portanto, em última instância, uma criação do mundo, de qualquer espécie que fosse — e esta criação é frequentemente, entre os filósofos, por exemplo, em Hegel, ainda de longe mais complicada e mais impossível do que no cristianismo —, formavam o campo do idealismo. Os outros, que viam a Natureza como o originário, pertencem às diversas escolas do materialismo.(...)

Mas a questão da relação de pensar e ser tem ainda um outro lado: como se comportam os nossos pensamentos acerca do mundo que nos rodeia para com esse mesmo mundo? Está o nosso pensar em condições de conhecer o mundo real, podemos nós produzir, nas nossas representações e conceitos do mundo real, uma imagem especular [Spiegelbild] correcta da realidade? Esta questão chama-se, na linguagem filosófica, a questão da identidade de pensar e ser, e é respondida afirmativamente, de longe, pelo maior número de filósofos. Em Hegel, por exemplo, a sua resposta afirmativa entende-se por si; pois, aquilo que nós conhecemos no mundo real é, precisamente, o seu conteúdo conforme ao pensamento, aquilo que faz do mundo uma realização por estádios da Ideia absoluta, a qual Ideia absoluta existiu algures desde a eternidade, independentemente do mundo e antes do mundo; mas salta aos olhos sem mais que o pensar pode conhecer um conteúdo que de antemão é já conteúdo de pensamento. Salta aos olhos, do mesmo modo, que, aqui, aquilo que há que demonstrar está já tacitamente contido no pressuposto. Isso de modo nenhum impede, porém, Hegel de tirar da sua prova da identidade de pensar e ser a ulterior conclusão de que a sua filosofia, porque é correcta para o pensar dele, é também, então, a única correcta e de que a identidade de pensar e ser tem de se comprovar pelo [facto] de a humanidade traduzir de pronto a filosofia dele da teoria para a prática e remodelar o mundo todo segundo princípios fundamentais de Hegel. Isto é uma ilusão que ele partilha, mais ou menos, com todos os filósofos.

Além destes, há, porém, ainda uma série de outros filósofos que contestam a possibilidade de um conhecimento do mundo ou, pelo menos, de um conhecimento exaustivo [erschöpfende]. Pertencem-lhe, entre os modernos, Hume e Kant, e ela [essa série] desempenhou um papel muito significativo no desenvolvimento filosófico. O decisivo para a refutação desta perspectiva foi já dito por Hegel, tanto quanto isso era possível do ponto de vista idealista; o que Feuerbach acrescenta de materialista é mais brilhante [de espírito, geistreich] do que profundo. A mais percuciente refutação desta, como de todas as outras tinetas filosóficas, é a prática, nomeadamente, a experimentação e a indústria. Quando nós podemos demonstrar a correcção da nossa concepção de um processo natural, fazendo-o nós a ele próprio, produzindo-o a partir das suas condições, fazendo-o, acima de tudo, tornar-se utilizável para objectivos nossos, põe-se fim à inapreensível «coisa em si» de Kant.

Os filósofos, porém, neste longo período de Descartes até Hegel e de Hobbes até Feuerbach, de modo nenhum foram impelidos para diante apenas, como acreditavam, pela força do puro pensamento. Pelo contrário. O que, na verdade, os impeliu para diante foi, nomeadamente, o progresso poderoso e sempre mais rapidamente impetuoso da ciência da Natureza e da indústria. Nos materialistas, isto mostrava-se logo à superfície, mas também os sistemas idealistas se encheram cada vez mais com um conteúdo materialista e procuraram conciliar a oposição de espírito e matéria panteisticamente; de tal modo que, finalmente, o sistema de Hegel representou apenas um materialismo, segundo método e conteúdo idealistamente posto de cabeça para baixo [auf den Kopf].(...)

O curso do desenvolvimento de Feuerbach é o de um hegeliano — a bem dizer, nunca totalmente orotodoxo — para o materialismo, um desenvolvimento que, num determinado estádio, condiciona uma rotura total com o sistema idealista do seu predecessor. Finalmente, é empurrado com uma força irresistível para a compreensão de que a existência pré-mundana da «Ideia absoluta» de Hegel, a «pré-existência das categorias lógicas», antes, portanto, de haver mundo, não é mais do que um resto fantástico da crença num criador extramundano; de que o mundo material, sensivelmente perceptível, a que nós próprios pertencemos, é o único real e de que a nossa consciência e pensar, por muito supra-sensíveis que pareçam, são o produto de um órgão material, corpóreo, do cérebro. A matéria não é um produto [Erzeugnis] do espírito, mas o espírito é ele próprio apenas o produto [Produkt] supremo da matéria. Naturalmente, isto é materialismo puro. Chegado aqui, Feuerbach estaca. Ele não pode vencer o pré-juízo filosófico, habitual, o pré-juízo não contra a coisa, mas contra o nome materialismo. Diz ele:

«O materialismo é para mim a base do edifício do ser [Weserc] e saber humanos; mas, para mim ele não é nada do que é para o fisiólogo, para o naturalista em sentido estrito, por exemplo, para Moleschott, e, por certo, [nada daquilo] que ele necessariamente é, do seu ponto de vista e da sua profissão: o próprio edifício. Para trás, concordo completamente com os materialistas, mas não para a frente.»(13*) (...)

O materialismo do século passado era predominantemente mecânico, porque, de todas as ciências da Natureza daquela altura, apenas a mecânica, e, a bem dizer, também só a dos corpos sólidos — celestes e terrestres —, em suma, a mecânica dos graves, tinha chegado a um certo acabamento. A química existia apenas na sua figura infantil, flogística[N31]. A biologia andava ainda de cueiros; o organismo vegetal e animal era investigado apenas grosseiramente e era explicado por causas puramente mecânicas; tal como para Descartes o animal, o homem era para os materialistas do século XVIII uma máquina. Esta aplicação exclusiva do padrão da mecânica a processos que são de natureza química e orgânica — e para os quais as leis mecânicas certamente que também valem, mas são empurradas para um plano recuado por outras leis, superiores — forma a primeira limitação específica, mas inevitável para o seu tempo, do materialismo francês clássico.

A segunda limitação específica deste materialismo consistiu na sua incapacidade de apreender o mundo como um processo, como uma matéria compreendida numa continuada formação [Fortbildung] histórica. Isto correspondia ao estado da ciência da Natureza da altura e à maneira metafísica, isto é, antidialéctica, do filosofar, com aquele conexa.

 Feuerbach tinha decididamente razão quando declinava a responsabilidade por esse materialismo; só que não devia confundir a doutrina dos pregadores ambulantes com o materialismo em geral.(...)

(...) Feuerbach tem toda a razão em que o materialismo meramente científico-natural é

«a base do edifício do saber humano, mas não o próprio edifício».(...)

Mas quem aqui, no domínio social, não andou «para a frente», não ultrapassou o seu ponto de vista de 1840 ou de 1844, foi o próprio Feuerbach (...) Quanto, neste domínio, ele permaneceu idealista, vê-lo-emos mais tarde em pormenor.

Aqui há apenas que observar que Starcke procura o idealismo de Feuerbach no lugar incorrecto.

«Feuerbach é idealista, acredita no progresso da humanidade.» (P. 19) — «A base, a infra-estrutura [Unterbau] do todo permanece, não obstante, o idealismo. O realismo não é para nós senão uma protecção contra enganos [Irrwege], enquanto seguimos as nossas correntes ideais. Não são compaixão, amor e entusiasmo pela verdade e pela justiça [Recht], forças ideais?» (P. VIII.)

Em primeiro lugar, idealismo não quer dizer aqui senão perseguição de objectivos ideais. Estes, porém, no máximo têm a ver com o idealismo de Kant e o seu «imperativo categórico»; mas, mesmo Kant chamou à sua filosofia «idealismo transcendental», de modo nenhum porque aí se trata de ideais éticos, mas por razões totalmente diferentes, como Starcke se recordará. A superstição segundo a qual o idealismo filosófico giraria em torno da crença em ideais éticos, isto é, sociais, surgiu fora da filosofia, entre filisteus alemães que aprenderam de cor nos poemas de Schiller as poucas migalhas de cultura filosófica de que precisam. Ninguém criticou mais agudamente o impotente «imperativo categórico» de Kant — impotente, porque ele pede o impossível [e], portanto, nunca chega a algo de real —, ninguém troçou mais cruelmente do arrobo filisteu por ideais irrealizáveis, veiculado por Schiller, do que precisamente o perfeito idealista Hegel (veja-se, por exemplo, a Phänomenologie(16*).

(...) nem uma só vez se pode evitar que tudo aquilo que move um homem tenha de passar pela sua cabeça — mesmo comer e beber, que começam em consequência de fome e sede sentidas por intermédio da cabeça e terminam em consequência da saciedade igualmente sentida por intermédio da cabeça. As acções [Einwirkungen] do mundo exterior sobre o homem expressam-se na sua cabeça, reflectem-se aí como sentimentos, pensamentos, impulsos, determinações de vontade, em suma, como «correntes ideais» e tornam-se, sob essa figura, «poderes ideais». Ora, se a circunstância de esse homem, em geral «seguir correntes ideais» e conceder uma influência sobre ele [próprio] a «poderes ideais» — se isto faz dele um idealista, então todo o homem, nalguma medida, normalmente desenvolvido é um idealista nato, e [, nesse caso,] como pode ainda, em geral, haver materialistas?

O facto é que — ainda que talvez inconscientemente — Starcke faz aqui uma imperdoável concessão ao pré-juízo filisteu contra o nome materialismo, [um pré-juízo] herdado da [sua] difamação durante longos anos pelos padres. O filisteu entende por materialismo glutonaria, bebedeira, cobiça, prazer da carne e vida faustosa, cupidez, avareza, rapacidade, caça ao lucro e intrujice de Bolsa, em suma, todos os vícios sujos de que ele próprio em segredo é escravo; e por idealismo, a crença na virtude, na filantropia universal e, em geral, num «mundo melhor», de que faz alarde diante de outros, mas nos quais ele próprio [só] acredita, no máximo, enquanto cuida de atravessar a ressaca ou a bancarrota que necessariamente se seguem aos seus habituais excessos «materialistas» e [enquanto], além disso, canta a sua cantiga predilecta: que é o homem? — meio animal, meio anjo.(...)

III

(...)A religião é, segundo Feuerbach, a relação de sentimento, a relação de coração, entre homem e homem, a qual, até aqui, procurava a sua verdade numa imagem especular fantástica da realidade — na mediação de um ou de muitos deuses, imagens especulares fantásticas de qualidade humanas —, mas agora a encontra directamente e sem mediação no amor entre Eu e Tu. E, assim, em Feuerbach, o amor sexual torna-se finalmente, uma das supremas, se não a forma suprema de exercício da sua nova religião.

Ora, têm existido relações de sentimento entre os homens [e] nomeadamente também entre os dois sexos, desde que há o homem. O amor sexual, especialmente, conheceu um desenvolvimento [Ausbildung] nos últimos oitocentos anos e conquistou uma posição que, durante este tempo, fizeram dele o eixo obrigatório de toda a poesia. As religiões positivas existentes limitaram-se a dar a mais alta consagração à regulação estatal do amor sexual, isto é, à legislação do casamento, e amanhã podem conjuntamente desaparecer sem que na prática do amor e da amizade se altere o mínimo que seja. De tal modo que a religião cristã tinha, de facto, desaparecido a tal ponto também em França, de 1793 a 1798, que o próprio Napoleão não a pôde introduzir de novo sem resistência e dificuldade; [e] sem que, contudo, durante esse intervalo, tenha surgido a necessidade de uma substituição no sentido de Feuerbach.

Em Feuerbach, o idealismo consiste aqui em que ele não faz simplesmente valer a relação dos homens entre si repousando sobre a inclinação recíproca, o amor sexual, a amizade, a compaixão, a abnegação, etc, tal como são em si mesmos, sem referência a uma religião particular pertencente, também para ele, ao passado, mas afirma que eles só alcançam a sua plena validade quando se lhes dá uma consagração superior sob o nome de religião. O principal, para ele, não é que estas ligações puramente humanas existam, mas que elas sejam apreendidas como a nova, verdadeira, religião. Elas só devem valer em pleno se forem religiosamente seladas. Religião vem de religare(17*) e quer originariamente dizer ligação. Por conseguinte, toda a ligação de dois homens é uma religião. Semelhantes artifícios etimológicos formam o último expediente da filosofia idealista. O que deve valer é, não o que a palavra significa segundo o desenvolvimento histórico do seu uso real, mas o que deve significar segundo a sua derivação. E, assim, o amor sexual e a ligação sexual são celestializados numa «religião», para que a palavra religião, cara à recordação idealista, não desapareça da linguagem.

Precisamente assim, falavam, nos anos quarenta, os reformistas de Paris da orientação de Louis Blanc, os quais, igualmente, só podiam representar [vorstellen] um homem sem religião como um monstro e nos diziam: Donc, l'athéisme c'est votre religion!.(18*) Se Feuerbach quer estabelecer a verdadeira religião na base de uma visão da Natureza essencialmente materialista, isso quer dizer apenas tanto como que ele [quer] apreender a química moderna como a verdadeira alquimia. Se a religião pode subsistir sem o seu deus, então também a alquimia o pode sem a sua pedra filosofal.

Decididamente falsa é a afirmação de Feuerbach, segundo a qual os

«períodos da humanidade se diferenciam apenas por transformações religiosas».


(...)O mesmo Feuerbach que a cada página prega a sensibilidade, o mergulho no concreto, na realidade, torna-se de uma ponta à outra abstracto assim que começa a falar de um comércio entre os homens mais amplo do que o mero comércio sexual.

Este comércio só lhe oferece um lado: a moral. E aqui choca-nos de novo a espantosa pobreza de Feuerbach comparado com Hegel. [Hegel] cuja ética ou doutrina da eticidade [Sittlichkeit] é a filosofia do direito e abrange: 1. o direito abastracto, 2. a moralidade [Moralität], 3. a eticidade [Sittlichkeit], sob a qual, por sua vez, estão reunidos: a família, a sociedade civil [bürgerliche Gesellschaft], o Estado. Tão idealista é aqui a forma, quanto realista é o conteúdo. Todo o domínio do direito, da( economia, da política, está aqui compreendido junto com a moral. Em Feuerbach, precisamente o inverso. Segundo a forma, é realista, ele parte do homem; mas do mundo, onde esse homem vive, não se fala absolutamente nada e, assim, esse homem permanece sempre o mesmo homem abstracto que na filosofia da religião tinha a palavra. Esse homem, precisamente, não nasceu do corpo da mãe, eclodiu do deus das religiões monoteístas, por conseguinte, também não vive num mundo real urgido historicamente e historicamente determinado; é certo que em comércio com outros homens, mas esses outros são tão abstrac-os quanto ele próprio. Na filosofia da religião ainda temos, contudo, homem e mulher, mas, na ética, também esta última diferença desaparece. Sem dúvida que, em Feuerbach, com longos intervalos, obrevêm proposições como:

«Num palácio pensa-se de maneira diferente do que numa cabana.»(19*) — «Onde, perante a fome, perante a miséria, não tens matéria nenhuma no corpo, ambém aí não tens na cabeça, nos sentidos(20*) e [no] coração matéria nenhuma para a moral.» — «A política tem de se tornar a nossa religião»(21*), etc.

Mas Feuerbach não sabe absolutamente o que fazer com estas proposições, permanecem puras maneiras de dizer, e o próprio Starcke tem de admitir que a política era para Feuerbach uma fronteira intransponível e que a

«doutrina da sociedade, a sociologia, era para ele uma terra incógnita».(22*)(...)

A história é, para ele, em geral, um campo onde não se sente à vontade, incómodo.

O que Feuerbach nos faz saber acerca da moral não pode, por isso, ser senão extremamente magro. O impulso para a felicidade é inato ao homem e tem de formar, portanto, a base de toda a moral. Mas o impulso para a felicidade experimenta uma dupla correcção. Em primeiro lugar, pelas consequências naturais das nossas acções: à bebedeira segue-se a ressaca, aos excessos habituais a doença. Em segundo lugar, pelas suas consequências sociais: se não respeitamos o mesmo impulso dos outros para a felicidade, eles defendem-se e perturbam o nosso próprio impulso para a felicidade. Segue-se daqui que nós, para satisfazer o nosso impulso, temos de estar em condições de avaliar correctamente as consequências das nossas acções e temos, por outro lado, de fazer valer o igual direito [Gleichberechtigung] dos outros ao respectivo impulso. Autolimitação racional em relação a nós próprios e amor — sempre de novo o amor! — no comércio com os outros são, portanto, as regras fundamentais da moral de Feuerbach, das quais todas as outras derivam. E nem as mais espirituosas exposições de Feuerbach, nem os mais fortes elogios de Starcke, podem esconder a tenuidade e a chaneza deste par de proposições.

Ficarão as coisas algo melhor com o igual direito do impulso dos outros para a felicidade? Feuerbach estabelece esta reivindicação absolutamente como válida para todos os tempos e circunstâncias. Mas desde quando é que ela vale? Na Antiguidade, entre escravos e senhores, na Idade Média, entre servos e barões, tratava-se de igual direito do impulso para a felicidade? O impulso para a felicidade da classe oprimida não era ele sacrificado, sem cerimónia e «de direito», ao da dominante?(...)

Em suma. Passa-se com a teoria moral de Feuerbach o mesmo do que com todas as suas predecessoras. Ela está talhada para todos os tempos, para todos os povos, para todas as situações, e, precisamente por isso, ela nunca, nem em parte alguma, é aplicável e permanece, face ao mundo real, tão impotente quanto o imperativo categórico de Kant.

Mas, como foi possível que a poderosa impulsão dada por Feuerbach tenha acabado por ser tão infrutuosa para ele próprio? Simplesmente pelo facto de que Feuerbach não conseguiu encontrar o caminho do reino das abstracções, mortalmente odiadas por ele próprio, para a realidade viva. Ele agarrou-se com força à Natureza e ao homem; mas, Natureza e homem permanecem, nele, meras palavras. Nem acerca da Natureza real, nem acerca do homem real, ele nos sabe dizer algo de determinado. Só se passa, porém, do homem abstracto de Feuerbach para os homens vivos reais, se se os considerar a agir na história.
(...) o passo que Feuerbach não deu, tinha, todavia, de ser dado; o culto do homem abstracto, que formava o cerne da nova religião de Feuerbach, tinha de ser substituído pela ciência acerca dos homens reais e do seu desenvolvimento histórico. Este desenvolvimento ulterior do ponto de vista de Feuerbach para além de Feuerbach foi inaugurado, em 1845, por Marx na Heilige Familie.(...)

IV

Strauss, Bauer, Stirner, Feuerbach, foram estes os prolongamentos da filosofia de Hegel, na medida em que não abandonaram o solo filosófico. Strauss, depois da Leben Jesu e da Dogmatik(27*)entregou-se apenas à beletrística filosófica e histórico-eclesial à la(28*) Renan; Bauer só realizou alguma coisa no domínio da génese do cristianismo, mas aí [realizou] algo de significativo; Stirner permaneceu uma curiosidade, mesmo depois de Bakúnine o ter amalgamado com Proudhon e ter baptizado essa amálgama de «anarquismo»; só Feuerbach foi significativo como filósofo. Mas, não só a filosofia — a pretensa ciência da ciência [Wissenschaftswissenschaft] pairando acima de todas as ciências particulares, abarcando-as [zusammenfassend] — permaneceu para ele um limite intransponível, uma coisa sagrada intocável, como também, como filósofo, ele permaneceu a meio caminho, foi, por baixo, materialista [e], por cima, idealista; não acabou com Hegel criticamente, atirou-o simplesmente para o lado como inutilizável, enquanto ele próprio, face à riqueza enciclopédica do sistema de Hegel, não chegou a nada de positivo, para além de uma empolada religião do amor e de uma magra, impotente, moral.

Da dissolução da escola de Hegel saiu, porém, ainda uma outra orientação, a única que realmente deu frutos e esta orientação liga-se essencialmente ao nome de Marx (Seja-me permitido aqui um esclarecimento pessoal. Recentemente aludiu-se por várias vezes à minha quota-parte nessa teoria e, portanto, eu não posso deixar de dizer aqui as poucas palavras que arrumam este ponto. Eu próprio não posso negar que, antes e durante a minha colaboração de quarenta anos com Marx, tive uma certa quota-parte autónoma, tanto na fundação como, nomeadamente, na elaboração da teoria. Mas, a maior parte dos pensamentos directores fundamentais, Particularmente no domínio económico e histórico, e, especialmente, a aguda formulação definitiva dela, pertencem a Marx. Àquilo com que eu contribuí, também Marx podia — quando muito, exceptuando alguns ramos especiais — ter muito bem chegado sem mim. Ao que Marx realizou, eu não teria chegado. Marx estava mais acima, via mais longe, abarcava mais e mais rapidamente, do que todos nós, os outros. Marx era um génio, nós, os outros, no máximo, talentos. Sem ele, a teoria não seria hoje, de longe, aquilo que é. Ela tem, portanto, também com razão, o nome dele.).

A separação relativamente à filosofia de Hegel resultou aqui também de um regresso ao ponto de vista materialista. Significa isto que se decidiu apreender o mundo real — Natureza e história — tal como ele próprio se dá a quem quer que se aproxime dele sem tretas idealistas preconcebidas; decidiu-se sacrificar impiedosamente toda a treta idealista que não pudesse ser posta em consonância com os factos apreendidos na sua conexão própria.

Hegel não foi simplesmente posto de lado; partiu-se, pelo contrário, do seu lado revolucionário acima desenvolvido, do método dialéctico.

Voltámos a apreender materialistamente os conceitos da nossa cabeça como imagens [Abbilder] das coisas reais, em vez de [apreender] as coisas reais como imagens deste ou daquele estádio do conceito absoluto.
Deste modo, porém, o lado revolucionário da filosofia de Hegel foi retomado e, ao mesmo tempo, libertado dos seus enfeites idealistas que, em Hegel, tinham impedido o seu cumprimento consequente. O grande pensamento fundamental de que o mundo não é de apreender como um complexo de coisas prontas, mas como um complexo de processos, onde as coisas, aparentemente estáveis, não passam menos do que as imagens de pensamento delas na nossa cabeça — os conceitos — por uma ininterrupta mudança do devir e do perecer (...)

O velho método de investigação e de pensamento que Hegel chamava «metafísico», que se ocupava preferentemente com a investigação das coisas como permanências [Bestände] fixas dadas e cujos restos ainda assombram fortemente a nossa cabeça, teve, no seu tempo, uma grande justificação histórica. As coisas tinham de ser investigadas primeiro, antes de que os processos pudessem ser investigados. Tinha que se saber primeiro o que uma qualquer coisa era, antes de se se poder aperceber das transformações que se processavam nela.(...)

Ora, a história do desenvolvimento da sociedade mostra-se, porém, num ponto essencialmente diversa da Natureza. Na Natureza — na medida em que deixemos fora de consideração a retroacção do homem sobre a Natureza — há puramente factores cegos, desprovidos de consciência, que actuam uns sobre os outros e em cujo jogo recíproco a lei universal se faz valer. De tudo o que acontece — tanto das inúmeras casualidades aparentes, que são visíveis à superfície, como dos resultados finais, que demonstram a conformidade a leis no interior destas casualidades —, nada acontece como objectivo consciente querido. Em contrapartida, na história da sociedade, os agentes estão nitidamente dotados de consciência, são homens que agem com reflexão [Überlegung] ou paixão, que trabalham para determinados objectivos; nada acontece sem propósito [Absicht] consciente, sem objectivo querido. Mas esta diferença, por muito importante que seja para a investigação histórica — nomeadamente, de épocas e eventos singulares — não altera em nada o facto de que o curso da história é regido por leis internas universais. Pois, também aqui, apesar dos objectivos conscientemente queridos de todos os indivíduos, domina aparentemente à superfície, grosso modo, o acaso. Só raramente acontece o querido; na maioria dos casos, os múltiplos objectivos queridos entrecruzam-se e contradizem-se, ou esses mesmos objectivos são de antemão irrealizáveis, ou os meios são insuficientes. Assim, os choques das inúmeras vontades individuais e acções individuais conduzem a um estado que é totalmente análogo ao que domina na Natureza desprovida de consciência. Os objectivos das acções são queridos, mas os resultados que realmente decorrem das acções não são queridos, ou. na medida em que primeiro parecem contudo corresponder ao objectivo querido, têm finalmente consequências totalmente diferentes das queridas. Os acontecimentos históricos aparecem, assim, grosso modo, como que igualmente dominados pela casualidade. Mas, lá onde, à superfície, o acaso conduz o seu jogo, ele está sempre dominado por leis internas ocultas, e trata-se apenas de descobrir estas leis.

Os homens fazem a sua história, ocorra ela como ocorrer, perseguindo cada um os seus próprios objectivos queridos conscientes, e a resultante destas várias vontades que agem em diversas direcções e da sua influência múltipla sobre o mundo exterior é que e, precisamente, a história. Trata-se, portanto, também daquilo que muitos indivíduos querem. A vontade é determinada por paixão ou reflexão. Mas, as alavancas que, por sua vez, determinam a paixão ou a reflexão são de espécie muito diversa. Em parte podem ser objectos exteriores, em parte, móbiles [Beweggrunde] ideais [ideelle], ambição, «entusiasmo pela verdade e pela justiça», ódio pessoal, ou também puros caprichos individuais de toda a espécie. Mas, por um lado, vimos que as várias vontades individuais activas na história, na maioria dos casos, produzem resultados totalmente diferentes dos queridos — frequentes vezes, rotundamente os contrapostos — e que, portanto, para o resultado conjunto, os seus móbiles são de subordinada significação. Por outro lado, pergunta-se ainda: que forças impulsionadoras estão, por sua vez, por detrás destes móbiles, que causas históricas tomam, na cabeça dos agentes, a forma de tais móbiles?

O velho materialismo nunca se pôs esta questão. A sua concepção da história — na medida em que, em geral, ele tenha uma — é, portanto, também essencialmente pragmática, ajuíza tudo segundo os motivos da acção, divide os homens que agem historicamente em nobres [de alma] e não-nobres e verifica, então, em regra, que os nobres são os enganados e os não-nobres os vencedores; do que se segue, então, para o velho materialismo, que do estudo da história não resulta muito de edificante e, para nós, que, no domínio da história, o velho materialismo se tornou infiel a si próprio, porque toma as forças motrizes ideais aí actuantes como causas últimas, em vez de investigar aquilo que está por detrás delas, quais são as forças motrizes dessas forças motrizes. A inconsequência não reside em que sejam reconhecidas forças motrizes ideais, mas em que, a partir destas, não se regresse mais atrás às suas causas motoras. A filosofia da história, em contrapartida, tal como, nomeadamente, é representada por Hegel, reconhece que os móbiles ostensivos, e também os [móbiles] realmente activos, dos homens que agem historicamente de modo nenhum são as causas últimas dos acontecimentos históricos, que por detrás destes móbiles estão outros poderes motores, que há que investigar; mas ela procura esses poderes, não na própria história, importa-os antes de fora, da ideologia filosófica, para dentro da história. Em vez de explicar a história da Grécia antiga a partir da sua conexão própria, interna, Hegel afirma, por exemplo, simplesmente que ela não é nada mais do que a elaboração das «figuras da individualidade bela», a realização da «obra de arte» como tal. A este propósito, ele diz muito de belo e de profundo acerca da Grécia antiga, mas isso não impede que nós hoje já não nos contentemos com uma tal explicação, que é uma mera maneira de dizer.

Quando se trata, portanto, de investigar os poderes impulsionadores que — consciente ou inconscientemente e, por certo, comuita frequência, inconscientemente — estão por detrás dos móbiles dos homens que agem historicamente e que constituem propriamente as forças motrizes últimas da história, não se pode tratar tanto dos móbiles dos indivíduos, por mais eminentes que sejam, mas daqueles que põem em movimento grandes massas, povos inteiros — e, em cada povo, por sua vez, classes inteiras de povo; e isto também, não momentaneamente, para um jacto passageiro e um fogo de palha que rapidamente arde, mas para uma acção duradoura que desemboca numa grande transformação histórica. Fundamentar as causas motrizes que aqui se reflectem clara ou obscuramente, imediatamente ou em forma ideológica, mesmo em forma celestializada, na cabeça das massas que agem e dos seus dirigentes — os chamados grandes homens — como móbiles conscientes — é este o único caminho que nos pode pôr na pista das leis que dominam na história, tanto grosso modo como nos períodos e países singulares.


Esta concepção põe, porém, fim à filosofia no domínio da história, assim como a concepção dialéctica da Natureza torna tão desnecessária quanto impossível toda a filosofia da Natureza. Por toda a parte, não se trata mais de congeminar conexões na cabeça, mas de as descobrir nos factos.