Relato da Reunião de discussão do texto "Sobre a autoridade", de Friedrich Engels, por Danilo Uler e Thiago Barison
Síntese do debate do grupo
31/10/13
1. Textos-base
ENGELS, Friedrich.
Prefácio à edição alemã de 1892. In: ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Trad. B. A.
Schumann. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 345-58.
NETTO, José Paulo.
Apresentação. In: ENGELS, Friedrich. A
situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Trad. B. A. Schumann. São
Paulo: Boitempo, 2010, p. 9-35.
ENGELS, Friedrich. Sobre a autoridade. Disponível em http://www.marxists.org/portugues/marx/1873/03/autoridade-pt.htm.
HOBSBAWM, Eric. A
situação da classe trabalhadora na Inglaterra. In: HOBSBAWM, Eric. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo.
Trad. Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 88-97.
2. Caso clássico
Existe um forte indício
pelo qual a ideia inicial de “caso clássico” tenha surgido inicialmente nesta
obra de Engels – A situação da classe
trabalhadora na Inglaterra, influenciando decisivamente a elaboração do
método marxista. Engels estuda o industrialismo inglês enquanto imagem do que
será o desenvolvimento ulterior do capitalismo alemão[1] e
do restante do mundo. A Inglaterra do século XIX era o que de mais avançado
havia, no que diz respeito à generalização da produção capitalista.
O expediente do caso
clássico se impõe nos modos de fazer ciência: as formas mais evoluídas explicam
as menos evoluídas. Isto tem importância crucial na crítica revolucionária da
humanidade: evita um passado explicando e comandando o presente, cristalizando
este (“sempre foi assim, sempre será”). Como se o desenvolvimento dos fatos
passados tivessem que, necessariamente, levar à forma presente, justificando-se
"historicamente" o modo como o fenômeno atualmente se apresenta; a
noção de que o mais simples explica o mais complexo. O legado marxista inverte
esta lógica, dizendo que a
sociedade burguesa é a
organização histórica da produção mais desenvolvida, mais diferenciada. As
categorias que exprimem suas condições, a compreensão de sua própria
organização a tornam apta para abarcar a organização e as relações de todas as
formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha
edificada, e cujos vestígios, não ultrapassados ainda, leva arrastando,
enquanto tudo o que fora antes apenas indicado desenvolveu, tomando toda sua
significação etc. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que
nas espécies animais inferiores indica uma forma superior, não pode, ao
contrário, ser compreendida senão quando se conhece a forma superior. A
economia burguesa fornece a chave da economia antiga etc. Porém, não conforme o
método dos economistas, que fazem desaparecer todas as diferenças históricas e
vêem a forma burguesa em todas as formas de sociedade [...][2].
Por oportuno, convém
mencionar uma analogia deste imperativo epistemológico com a experiência
brasileira recente: a greve dos petroleiros de 1995. A maneira truculenta e
antidemocrática com que o Judiciário se posicionou frente àquele movimento de
trabalhadores (para não se falar da invasão das refinarias pelo Exército)
permite-nos tratar esta experiência como um caso
clássico, assim como o foram os mineiros na Inglaterra de 1984-5 e os
controladores de voo nos EUA de 1981. Se o metroviário de São Paulo
posteriormente intentar uma paralisação, o caso dos petroleiros lhe dirá: “De te fabula narratur!” [A história é a
teu respeito!].
2. Moralidade da grande indústria
Engels chama atenção no
Prefácio de 1892 para uma sofisticação da dominação burguesa. No fito de evitar
a “fadiga” decorrente de choques desnecessários com os trabalhadores, a
evolução da indústria soterra os “pequenos furtos”, o truck system[3],
sonegação nas medidas (quando a produção se dá por peças/produtos).
As greves e os
sindicatos, antes “invenções do diabo”, passam a ser vistos com naturalidade.
Greve pode ser um bom negócio, desde que efetivada em momento oportuno – baixa
do comércio.
Os pequenos industriais
que retiram grande parte de seus lucros destas velhacarias são engolidos pelos
grandes, que adotam a “moralidade”. Não, os capitalistas não ficaram mais
bonzinhos; a moralidade como necessidade própria do processo de concentração de
capital. Que tendência é esta que perpassa o mito da responsabilidade ambiental
e social das empresas!
Desta reflexão decorre
um rico debate. Assume relevo a mensagem contida no Prefácio da 1ª edição alemã
d’O Capital, que evidencia o papel das estruturas.
Não foi róseo o colorido que dei
às figuras do capitalista e do proprietário de terras. Mas, aqui, as pessoas só interessam na medida em que
representam categorias econômicas, em que simbolizam relações de classe e
interesses de classe. Minha concepção do desenvolvimento da formação
econômico-social como um processo histórico-natural exclui, mais do que
qualquer outra, a responsabilidade do indivíduo por relações, das quais ele
continua sendo, socialmente, criatura, por mais que, subjetivamente, se julgue
acima delas[4].
Estamos falando, então,
de “personificações” do capital e do trabalho, como se o capitalista e o
trabalhador fossem suportes das estruturas de extração de mais-valia. Esta
perspectiva afasta, por exemplo, qualquer explicação de viés individualista
para os fenômenos sociais. Exemplo claro é o dos torturadores: querer colocar
estes indivíduos como monstros, encerrando-se aí o entendimento, acaba por
desviar a atenção da totalidade.
Há que se notar que
esta reflexão marca a passagem do Livro I para o Livro III d’O Capital. Como a abstração já processou
os conceitos determinantes (Althusser diria conceitos abstrato-formais[5]),
já é possível entender uma realidade empírica, com o instrumental teórico já
consolidado.
3. Sufrágio universal
Ainda no prefácio de
1892, Engels destaca o papel que as vitórias eleitorais cumprem ao colocar o
operário na cena política europeia. É justamente aqui que se trava um profundo
debate. Haveria uma fé excessiva no sufrágio? Um erro de prognóstico? Pois
parecia certo para Engels que o movimento operário poderia se desenvolver a
partir das eleições. E foi, de fato, o que ocorreu. Mas, por que não cresceu
revolucionariamente? É dizer, toda tentativa eleitoral terá de, necessariamente,
redundar em reformismo, adequando-se e se acomodando às estruturas de
dominação?
Pode-se retomar uma
discussão do grupo travada alhures. Inferindo que a república democrática é a
forma mais sofisticada de dominação, onde a riqueza exerce mais segura e
indiretamente seu poder, Engels diz que é nela que será travada a “última e
definitiva batalha entre o proletariado e a burguesia”.
Enquanto a classe oprimida – no
nosso caso, o proletariado – não está madura para promover ela própria a sua
emancipação, a maioria dos seus membros considera a ordem social existente como
a única possível e, politicamente, forma a cauda da classe capitalista, a sua
ala da extrema esquerda. Entretanto, na medida em que vai amadurecendo para a
auto-emancipação, constitui-se como um partido independente e elege os seus
próprios representantes e não os dos capitalistas. O sufrágio universal é,
assim, o índice do amadurecimento da classe operária. No Estado actual, não pode, nem poderá jamais, ir além disso; mas é o
suficiente. No dia em que o termómetro do sufrágio universal registrar para
os trabalhadores o ponto de ebulição, eles saberão – tanto quanto os capitalistas
– o que lhes cabe fazer[6].
Ou seja, Engels
identifica as tendências da política que correspondem ao grau de
desenvolvimento econômico capitalista. Estas tendências colocam a armadilha do
terreno eleitoral para a classe trabalhadora, mas terreno que esta terá de
transitar, elegendo seus próprios representantes e amadurecendo com isso. A
sugestão de Engels parece ser de que a república democrática não bastará, sendo
necessário sua suplantação. Ou seja, o sufrágio figura como “termômetro de
ebulição”, cujo resultado terá de ser aproveitado pelo proletariado para o
revolucionamento das sociedades. Enfim, um debate que permanece aberto, sendo
preciso ainda procurar respostas em Lenin: inflexibilidade estratégica (a
insurreição é inegociável) e flexibilidade na tática (identificando como e
quando transitar no terreno eleitoral).
4. Sobre a autoridade
Existe um grande mérito
neste texto: uma crítica ao modo organizativo e à visão estratégica típica do
anarquismo. Demarca o ponto de vista marxista em relação às teses vigentes
através das quais era preciso abolir a autoridade imediatamente (como se o
inimigo fosse a autoridade-pessoa). Olvida a necessária organização que demanda
a revolução, posto que inserida na luta de classes.
Na leitura deste texto,
há que se evitar futurologia. A sociedade socialista superior (ou comunista)
não será isto, nem aquilo. Afinal, os homens somente colocam os problemas que
podem resolver em cada momento histórico. Uma determinação negativa é diferente
de prever o que será, sendo possível dizer que não haverá mercadoria, classes
sociais, etc.
Mas o debate de Engels
evita purismos e a ingenuidade destas correntes que identificam a autoridade
abstratamente, como um mal por princípio. O parágrafo final sintetiza bem o
combate teórico.
Porque é que os anti-autoritários
não se limitam a erguer-se contra a autoridade política, contra o Estado? Todos
os socialistas concordam em que o Estado político e com ele a autoridade
política desaparecerão como conseqüência da próxima revolução social, ou seja,
que as funções públicas perderão o seu caráter político e se transformarão em
simples funções administrativas protegendo os verdadeiros interesses sociais.
Mas os anti-autoritários pedem que o Estado político autoritário seja abolido
de um golpe, antes mesmo que se tenham destruído as condições sociais que o
fizeram nascer. Pedem que o primeiro ato da revolução social seja a abolição da
autoridade. Já alguma vez viram uma revolução, estes senhores? Uma revolução é
certamente a coisa mais autoritária que se possa imaginar; é o ato pelo qual
uma parte da população impõe a sua vontade à outra por meio das espingardas,
das baionetas e dos canhões, meios autoritários como poucos; e o partido
vitorioso, se não quer ser combatido em vão, deve manter o seu poder pelo medo
que as suas armas inspiram aos reacionários. A Comuna de Paris teria durado um
dia que fosse se não se servisse dessa autoridade do povo armado face aos
burgueses? Não será verdade que, pelo contrário, devemos lamentar que não se
tenha servido dela suficientemente? Assim, das duas uma: ou os
anti-autoritários não sabem o que dizem, e, nesse caso, só semeiam a confusão;
ou, sabem-no, e, nesse caso, atraiçoam o movimento do proletariado. Tanto num
caso como noutro, servem à reação.
[1]
“Se as condições de vida do proletariado não chegaram, na Alemanha, a atingir a
forma clássica que alcançaram na Inglaterra, temos, no fundo, a mesma ordem
social que, mais cedo ou mais tarde, se alçará ao mesmo extremo atingido do
outro lado do canal da Mancha, salvo se a nação tomar a tempo medidas capazes
de dotar o conjunto do sistema social de uma base nova”. ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na
Inglaterra, p. 42.
[2]
MARX, Karl. Introdução à Contribuição à crítica da economia política. In: MARX,
Karl. Contribuição à crítica da economia
política. 2.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 262.
[3]
Sistema que afugenta o trabalhador ao empregador, pois aquele trabalha mas
contrai mais dívidas, posto que somente pode comprar utensílios deste (ou mesmo
tem de pagar para utilizar ferramentas ou uniformes).
[4]
MARX, Karl. Prefácio da 1ª edição. In: MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I, v. 1. Trad.
Reginaldo Sant’Anna. 30. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p.
15. Grifos não originais.
[5]
ALTHUSSER, Louis. Sobre el trabajo
teórico: dificultades y recursos. Barcelona: Editoral Anagrama, s/d.
[6]
ENGELS, Friedrich. A origem da família,
da propriedade privada e do Estado. Trad. H. Chaves. Lisboa: Editorial
Presença, s/d, p. 229-30. Grifos não originais.
No texto "Sobre a autoridade", escrito em
1873, Friedrich Engels dialoga com "alguns socialistas" que se opõem
a autoridade em geral e sob quaisquer circunstâncias: opõem-se como numa
cruzada contra o "princípio da autoridade". O autor, diga-se logo, parece
dialogar diretamente com Bakhunin, que, segundo se aventou durante nossa
discussão, teria acusado a corrente "teutônico-semita" (em referência
nos seus próprios termos a Marx e Engels) da Internacional Comunista de querer
fazer dela algo como um "Estado".
Primeiro, Engels explica que a autoridade está ligada
à própria organização social. Dá exemplos de situações que a exigem, como numa
fábrica, numa ferrovia e num barco em alto mar. Desfaz no debate, assim, um
primeiro engano: o terminológico. Pois, segundo conta, muitos companheiros a
quem apresentara tais exemplos respondiam-lhe que, de fato, tal ou qual
organização e subordinação dos indivíduos a ela é imprescindível, mas que a
isso chamariam "encargo". Ao que Engels arremata com humor:
"Crêem êsses senhores que modificam a coisa modificando-lhe o nome."
(in: Textos volume II. São Paulo: Edições Sociais,
1976, p. 121).
Isso porque Engels relativiza o par
autoridade/autonomia segundo as diferentes fases do desenvolvimento social. E,
nesse sentido, pondo-se totalmente do ponto de vista de seus contendores,
afirma:
"Se os autonomistas se limitassem a dizer que a
organização social do futuro restringirá a autoridade até o limite estrito em
que as condições da produção a tornem inevitável, poderíamos entender-nos; mas
longe disso, permanecem cegos para todos os fatos que tornam a coisa necessária
e arremetem furiosamente contra a palavra.", (Ibidem).
Por fim, polemiza, e aí mais claramente, com a tese
que se veio a circunscrever no campo do "anarquismo", segundo a qual
dever-se-ia exigir como primeiro ato da revolução a abolição do Estado político
autoritário. Com isso, dá as indicações para a futura divisão do comunismo em
duas fases: a idéia que Lênin, na obra O Estado e a Revolução, procurou
esclarecer de que numa primeira fase revolucionária o Estado político como
expressão da dominação do proletariado persiste e que, somente após pôr fim à
base social que engendra essa forma política e a própria autoridade, permitir o
"definhamento" do Estado, que deixa de existir enquanto forma
política e cujas funções tornar-se-iam, segundo os termos aqui indicados,
"simples funções administrativas, destinadas a zelar pelos verdadeiros
interesses sociais". Importa notar ainda que essa pequena reflexão de Engels
dialoga com a "Crítica ao Programa de Gotha", de Marx, escrito pouco
depois, em 1875.
Essa linha de argumentação suscitou-nos o retorno à
reflexão sobre o uso e a permanência, bem como sobre a extinção, da forma
jurídica nas diferentes fases da transição socialista.
A lição clara que se tira é a crítica ao procedimento
de se pretender aplicar ao momento presente algo que resultaria de um longo
processo histórico. De se pretender deduzir uma postura política concreta, o
“autonomismo”, de uma análise abstrata sobre a dominação em geral.
Isso vai ao encontro da reflexão feita na semana
anterior, em cima do texto “O Socialismo Jurídico”, em que concluímos
conjuntamente que o caráter acomodador ou desestabilizador de uma bandeira de
luta ou palavra de ordem não determinado por sua dedução lógica do seio da
análise do modo de produção. Senão, diferentemente, o que determina se uma
bandeira de luta assume um caráter desestabilizador ou não é a correlação de
forças entre as classes sociais em luta em cada momento, de sorte que
reivindicações ainda que jurídicas das classes dominadas podem assumir um
potencial que lhe transcende os limites lógicos e abstratos. Essa “análise
concreta da situação concreta” das classes em luta, digamos assim, constitui o
terreno da prática política.
Uma última reflexão que vale a pena registrar. A
Crítica do Direito nega a persistência da forma jurídica uma vez que se supere
o modo de produção capitalista. Fica a dúvida para aprofundamentos posteriores:
trata-se isso de tomar a questão da persistência da forma jurídica como um “não-problema”
ou negar a possibilidade de persistência seria tomá-lo e enfrentá-lo (“Crítica
ao Programa de Gotha”)? Indo direto ao ponto: não há no texto de Engels sobre a
autoridade a idéia contida de que qualquer forma de organização pressuporá a
submissão da autonomia individual a ela? Que qualquer forma de organização
social, pensando-se em termos de divisão do trabalho como a “dos produtores
livremente associados” — termo recorrente n´O
Capital — pressuporá a “democracia”, a igualdade de votos entre os
produtores na decisão sobre a associação e sua respectiva forma de organização
à qual se submeterão em seguida? Como se dá a “livre associação dos produtores”
sem a mediação de alguma forma eu não
sei — e, ao que nos ensina a Crítica do Direito, a democracia do sujeito que
vota e se submete à maioria dos votos dos outros sujeitos corresponde à forma
jurídica. Mas insistimos em colocar essa
questão como um problema porque, como bem disse Engels, não adianta mudar o nome
para modificar a coisa...
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