quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Relatório de Leitura e Debate - 31/10, "Sobre a autoridade", de Friedrich Engels

Relato da Reunião de discussão do texto "Sobre a autoridade", de Friedrich Engels, por Danilo Uler e Thiago Barison

Síntese do debate do grupo
31/10/13

1. Textos-base
ENGELS, Friedrich. Prefácio à edição alemã de 1892. In: ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Trad. B. A. Schumann. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 345-58.
NETTO, José Paulo. Apresentação. In: ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Trad. B. A. Schumann. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 9-35.
ENGELS, Friedrich. Sobre a autoridade. Disponível em http://www.marxists.org/portugues/marx/1873/03/autoridade-pt.htm.
HOBSBAWM, Eric. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. In: HOBSBAWM, Eric. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo. Trad. Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 88-97.


2. Caso clássico

Existe um forte indício pelo qual a ideia inicial de “caso clássico” tenha surgido inicialmente nesta obra de Engels – A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, influenciando decisivamente a elaboração do método marxista. Engels estuda o industrialismo inglês enquanto imagem do que será o desenvolvimento ulterior do capitalismo alemão[1] e do restante do mundo. A Inglaterra do século XIX era o que de mais avançado havia, no que diz respeito à generalização da produção capitalista.
O expediente do caso clássico se impõe nos modos de fazer ciência: as formas mais evoluídas explicam as menos evoluídas. Isto tem importância crucial na crítica revolucionária da humanidade: evita um passado explicando e comandando o presente, cristalizando este (“sempre foi assim, sempre será”). Como se o desenvolvimento dos fatos passados tivessem que, necessariamente, levar à forma presente, justificando-se "historicamente" o modo como o fenômeno atualmente se apresenta; a noção de que o mais simples explica o mais complexo. O legado marxista inverte esta lógica, dizendo que a
sociedade burguesa é a organização histórica da produção mais desenvolvida, mais diferenciada. As categorias que exprimem suas condições, a compreensão de sua própria organização a tornam apta para abarcar a organização e as relações de todas as formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada, e cujos vestígios, não ultrapassados ainda, leva arrastando, enquanto tudo o que fora antes apenas indicado desenvolveu, tomando toda sua significação etc. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que nas espécies animais inferiores indica uma forma superior, não pode, ao contrário, ser compreendida senão quando se conhece a forma superior. A economia burguesa fornece a chave da economia antiga etc. Porém, não conforme o método dos economistas, que fazem desaparecer todas as diferenças históricas e vêem a forma burguesa em todas as formas de sociedade [...][2].
Por oportuno, convém mencionar uma analogia deste imperativo epistemológico com a experiência brasileira recente: a greve dos petroleiros de 1995. A maneira truculenta e antidemocrática com que o Judiciário se posicionou frente àquele movimento de trabalhadores (para não se falar da invasão das refinarias pelo Exército) permite-nos tratar esta experiência como um caso clássico, assim como o foram os mineiros na Inglaterra de 1984-5 e os controladores de voo nos EUA de 1981. Se o metroviário de São Paulo posteriormente intentar uma paralisação, o caso dos petroleiros lhe dirá: “De te fabula narratur!” [A história é a teu respeito!].


2. Moralidade da grande indústria

Engels chama atenção no Prefácio de 1892 para uma sofisticação da dominação burguesa. No fito de evitar a “fadiga” decorrente de choques desnecessários com os trabalhadores, a evolução da indústria soterra os “pequenos furtos”, o truck system[3], sonegação nas medidas (quando a produção se dá por peças/produtos).
As greves e os sindicatos, antes “invenções do diabo”, passam a ser vistos com naturalidade. Greve pode ser um bom negócio, desde que efetivada em momento oportuno – baixa do comércio.
Os pequenos industriais que retiram grande parte de seus lucros destas velhacarias são engolidos pelos grandes, que adotam a “moralidade”. Não, os capitalistas não ficaram mais bonzinhos; a moralidade como necessidade própria do processo de concentração de capital. Que tendência é esta que perpassa o mito da responsabilidade ambiental e social das empresas!
Desta reflexão decorre um rico debate. Assume relevo a mensagem contida no Prefácio da 1ª edição alemã d’O Capital, que evidencia o papel das estruturas.
Não foi róseo o colorido que dei às figuras do capitalista e do proprietário de terras. Mas, aqui, as pessoas só interessam na medida em que representam categorias econômicas, em que simbolizam relações de classe e interesses de classe. Minha concepção do desenvolvimento da formação econômico-social como um processo histórico-natural exclui, mais do que qualquer outra, a responsabilidade do indivíduo por relações, das quais ele continua sendo, socialmente, criatura, por mais que, subjetivamente, se julgue acima delas[4].
Estamos falando, então, de “personificações” do capital e do trabalho, como se o capitalista e o trabalhador fossem suportes das estruturas de extração de mais-valia. Esta perspectiva afasta, por exemplo, qualquer explicação de viés individualista para os fenômenos sociais. Exemplo claro é o dos torturadores: querer colocar estes indivíduos como monstros, encerrando-se aí o entendimento, acaba por desviar a atenção da totalidade.
Há que se notar que esta reflexão marca a passagem do Livro I para o Livro III d’O Capital. Como a abstração já processou os conceitos determinantes (Althusser diria conceitos abstrato-formais[5]), já é possível entender uma realidade empírica, com o instrumental teórico já consolidado.


3. Sufrágio universal

Ainda no prefácio de 1892, Engels destaca o papel que as vitórias eleitorais cumprem ao colocar o operário na cena política europeia. É justamente aqui que se trava um profundo debate. Haveria uma fé excessiva no sufrágio? Um erro de prognóstico? Pois parecia certo para Engels que o movimento operário poderia se desenvolver a partir das eleições. E foi, de fato, o que ocorreu. Mas, por que não cresceu revolucionariamente? É dizer, toda tentativa eleitoral terá de, necessariamente, redundar em reformismo, adequando-se e se acomodando às estruturas de dominação?
Pode-se retomar uma discussão do grupo travada alhures. Inferindo que a república democrática é a forma mais sofisticada de dominação, onde a riqueza exerce mais segura e indiretamente seu poder, Engels diz que é nela que será travada a “última e definitiva batalha entre o proletariado e a burguesia”.
Enquanto a classe oprimida – no nosso caso, o proletariado – não está madura para promover ela própria a sua emancipação, a maioria dos seus membros considera a ordem social existente como a única possível e, politicamente, forma a cauda da classe capitalista, a sua ala da extrema esquerda. Entretanto, na medida em que vai amadurecendo para a auto-emancipação, constitui-se como um partido independente e elege os seus próprios representantes e não os dos capitalistas. O sufrágio universal é, assim, o índice do amadurecimento da classe operária. No Estado actual, não pode, nem poderá jamais, ir além disso; mas é o suficiente. No dia em que o termómetro do sufrágio universal registrar para os trabalhadores o ponto de ebulição, eles saberão – tanto quanto os capitalistas – o que lhes cabe fazer[6].
Ou seja, Engels identifica as tendências da política que correspondem ao grau de desenvolvimento econômico capitalista. Estas tendências colocam a armadilha do terreno eleitoral para a classe trabalhadora, mas terreno que esta terá de transitar, elegendo seus próprios representantes e amadurecendo com isso. A sugestão de Engels parece ser de que a república democrática não bastará, sendo necessário sua suplantação. Ou seja, o sufrágio figura como “termômetro de ebulição”, cujo resultado terá de ser aproveitado pelo proletariado para o revolucionamento das sociedades. Enfim, um debate que permanece aberto, sendo preciso ainda procurar respostas em Lenin: inflexibilidade estratégica (a insurreição é inegociável) e flexibilidade na tática (identificando como e quando transitar no terreno eleitoral).


4. Sobre a autoridade

Existe um grande mérito neste texto: uma crítica ao modo organizativo e à visão estratégica típica do anarquismo. Demarca o ponto de vista marxista em relação às teses vigentes através das quais era preciso abolir a autoridade imediatamente (como se o inimigo fosse a autoridade-pessoa). Olvida a necessária organização que demanda a revolução, posto que inserida na luta de classes.
Na leitura deste texto, há que se evitar futurologia. A sociedade socialista superior (ou comunista) não será isto, nem aquilo. Afinal, os homens somente colocam os problemas que podem resolver em cada momento histórico. Uma determinação negativa é diferente de prever o que será, sendo possível dizer que não haverá mercadoria, classes sociais, etc.
Mas o debate de Engels evita purismos e a ingenuidade destas correntes que identificam a autoridade abstratamente, como um mal por princípio. O parágrafo final sintetiza bem o combate teórico.
Porque é que os anti-autoritários não se limitam a erguer-se contra a autoridade política, contra o Estado? Todos os socialistas concordam em que o Estado político e com ele a autoridade política desaparecerão como conseqüência da próxima revolução social, ou seja, que as funções públicas perderão o seu caráter político e se transformarão em simples funções administrativas protegendo os verdadeiros interesses sociais. Mas os anti-autoritários pedem que o Estado político autoritário seja abolido de um golpe, antes mesmo que se tenham destruído as condições sociais que o fizeram nascer. Pedem que o primeiro ato da revolução social seja a abolição da autoridade. Já alguma vez viram uma revolução, estes senhores? Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que se possa imaginar; é o ato pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra por meio das espingardas, das baionetas e dos canhões, meios autoritários como poucos; e o partido vitorioso, se não quer ser combatido em vão, deve manter o seu poder pelo medo que as suas armas inspiram aos reacionários. A Comuna de Paris teria durado um dia que fosse se não se servisse dessa autoridade do povo armado face aos burgueses? Não será verdade que, pelo contrário, devemos lamentar que não se tenha servido dela suficientemente? Assim, das duas uma: ou os anti-autoritários não sabem o que dizem, e, nesse caso, só semeiam a confusão; ou, sabem-no, e, nesse caso, atraiçoam o movimento do proletariado. Tanto num caso como noutro, servem à reação.




[1] “Se as condições de vida do proletariado não chegaram, na Alemanha, a atingir a forma clássica que alcançaram na Inglaterra, temos, no fundo, a mesma ordem social que, mais cedo ou mais tarde, se alçará ao mesmo extremo atingido do outro lado do canal da Mancha, salvo se a nação tomar a tempo medidas capazes de dotar o conjunto do sistema social de uma base nova”. ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, p. 42.
[2] MARX, Karl. Introdução à Contribuição à crítica da economia política. In: MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. 2.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 262.
[3] Sistema que afugenta o trabalhador ao empregador, pois aquele trabalha mas contrai mais dívidas, posto que somente pode comprar utensílios deste (ou mesmo tem de pagar para utilizar ferramentas ou uniformes).
[4] MARX, Karl. Prefácio da 1ª edição. In: MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I, v. 1. Trad. Reginaldo Sant’Anna. 30. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 15. Grifos não originais.
[5] ALTHUSSER, Louis. Sobre el trabajo teórico: dificultades y recursos. Barcelona: Editoral Anagrama, s/d.
[6] ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. H. Chaves. Lisboa: Editorial Presença, s/d, p. 229-30. Grifos não originais.






No texto "Sobre a autoridade", escrito em 1873, Friedrich Engels dialoga com "alguns socialistas" que se opõem a autoridade em geral e sob quaisquer circunstâncias: opõem-se como numa cruzada contra o "princípio da autoridade". O autor, diga-se logo, parece dialogar diretamente com Bakhunin, que, segundo se aventou durante nossa discussão, teria acusado a corrente "teutônico-semita" (em referência nos seus próprios termos a Marx e Engels) da Internacional Comunista de querer fazer dela algo como um "Estado".
Primeiro, Engels explica que a autoridade está ligada à própria organização social. Dá exemplos de situações que a exigem, como numa fábrica, numa ferrovia e num barco em alto mar. Desfaz no debate, assim, um primeiro engano: o terminológico. Pois, segundo conta, muitos companheiros a quem apresentara tais exemplos respondiam-lhe que, de fato, tal ou qual organização e subordinação dos indivíduos a ela é imprescindível, mas que a isso chamariam "encargo". Ao que Engels arremata com humor: "Crêem êsses senhores que modificam a coisa modificando-lhe o nome." (in: Textos volume II. São Paulo: Edições Sociais, 1976, p. 121).
Isso porque Engels relativiza o par autoridade/autonomia segundo as diferentes fases do desenvolvimento social. E, nesse sentido, pondo-se totalmente do ponto de vista de seus contendores, afirma:
"Se os autonomistas se limitassem a dizer que a organização social do futuro restringirá a autoridade até o limite estrito em que as condições da produção a tornem inevitável, poderíamos entender-nos; mas longe disso, permanecem cegos para todos os fatos que tornam a coisa necessária e arremetem furiosamente contra a palavra.", (Ibidem).
Por fim, polemiza, e aí mais claramente, com a tese que se veio a circunscrever no campo do "anarquismo", segundo a qual dever-se-ia exigir como primeiro ato da revolução a abolição do Estado político autoritário. Com isso, dá as indicações para a futura divisão do comunismo em duas fases: a idéia que Lênin, na obra O Estado e a Revolução, procurou esclarecer de que numa primeira fase revolucionária o Estado político como expressão da dominação do proletariado persiste e que, somente após pôr fim à base social que engendra essa forma política e a própria autoridade, permitir o "definhamento" do Estado, que deixa de existir enquanto forma política e cujas funções tornar-se-iam, segundo os termos aqui indicados, "simples funções administrativas, destinadas a zelar pelos verdadeiros interesses sociais". Importa notar ainda que essa pequena reflexão de Engels dialoga com a "Crítica ao Programa de Gotha", de Marx, escrito pouco depois, em 1875.
Essa linha de argumentação suscitou-nos o retorno à reflexão sobre o uso e a permanência, bem como sobre a extinção, da forma jurídica nas diferentes fases da transição socialista.
A lição clara que se tira é a crítica ao procedimento de se pretender aplicar ao momento presente algo que resultaria de um longo processo histórico. De se pretender deduzir uma postura política concreta, o “autonomismo”, de uma análise abstrata sobre a dominação em geral.
Isso vai ao encontro da reflexão feita na semana anterior, em cima do texto “O Socialismo Jurídico”, em que concluímos conjuntamente que o caráter acomodador ou desestabilizador de uma bandeira de luta ou palavra de ordem não determinado por sua dedução lógica do seio da análise do modo de produção. Senão, diferentemente, o que determina se uma bandeira de luta assume um caráter desestabilizador ou não é a correlação de forças entre as classes sociais em luta em cada momento, de sorte que reivindicações ainda que jurídicas das classes dominadas podem assumir um potencial que lhe transcende os limites lógicos e abstratos. Essa “análise concreta da situação concreta” das classes em luta, digamos assim, constitui o terreno da prática política.

Uma última reflexão que vale a pena registrar. A Crítica do Direito nega a persistência da forma jurídica uma vez que se supere o modo de produção capitalista. Fica a dúvida para aprofundamentos posteriores: trata-se isso de tomar a questão da persistência da forma jurídica como um “não-problema” ou negar a possibilidade de persistência seria tomá-lo e enfrentá-lo (“Crítica ao Programa de Gotha”)? Indo direto ao ponto: não há no texto de Engels sobre a autoridade a idéia contida de que qualquer forma de organização pressuporá a submissão da autonomia individual a ela? Que qualquer forma de organização social, pensando-se em termos de divisão do trabalho como a “dos produtores livremente associados” — termo recorrente n´O Capital — pressuporá a “democracia”, a igualdade de votos entre os produtores na decisão sobre a associação e sua respectiva forma de organização à qual se submeterão em seguida? Como se dá a “livre associação dos produtores” sem a mediação de alguma forma eu não sei — e, ao que nos ensina a Crítica do Direito, a democracia do sujeito que vota e se submete à maioria dos votos dos outros sujeitos corresponde à forma jurídica. Mas insistimos em colocar essa questão como um problema porque, como bem disse Engels, não adianta mudar o nome para modificar a coisa...

Nenhum comentário:

Postar um comentário