Relatório de leitura e debate
ENGELS, Friedrich. A Dialética da
Natureza. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
Prefácio
No prefácio de sua obra, Engels
começa por chamar atenção para o fato de que, na passagem da Idade Média à
Idade Moderna, os intelectuais eram caracterizados por uma leitura totalizante
da realidade, dedicando-se igualmente a todas as ciências e às artes. O mesmo
fato foi destacado também por Lukács em sua obra “A destruição da razão”
(indisponível em português, mas acessível em sua edição espanhola: LUKÁCS, György.
El asalto a la razón. Barcelona: Grijalbo, 1976.), na qual ele contrasta essa
notável característica da ciência da era moderna com a acentuada divisão do
trabalho que passa a caracterizar a produção científica a partir do século XIX,
muito em função do surgimento e progressivo domínio do positivismo científico
como fundamento epistemológico de toda essa produção.
Uma questão bastante interessante
surge desse contraste, principalmente no contexto de uma interpretação marxista
da produção científica. Ela diz respeito à ligação que poderia haver entre o
estado das forças produtivas da sociedade e a produção científica que a
acompanha. Com efeito, Leonardo da Vinci, utilizado como exemplo por Engels em
seu texto, vivia em uma sociedade de forças produtivas ainda bastante
artesanais, o que permitiria que seu próprio modo de fazer ciência fosse
artesanal e, por isso, com domínio de todo o processo de conhecimento. Com a
progressiva implantação da divisão do trabalho como base das forças produtivas
industriais, também as ciências cederiam a essa realidade, permitindo uma
superespecialização do cientista. O debate relevante consiste justamente na
identificação das vantagens e desvantagens dessa especialização excessiva,
dessa divisão do trabalho sempre crescente, sobre a posição do intelectual
totalizante, de que o último exemplo histórico talvez tenha sido o próprio
Engels, ao lado de Marx. A questão é bastante complexa porque se, de um lado, a
falta de visão de totalidade retira em grande medida a capacidade crítica do
cientista, que passa a produzir conhecimento de forma desconectada de sua
repercussão social e, pior, na maior parte dos casos atendendo a interesses
ligados ao financiamento de sua pesquisa, por outro lado a superespecialização
permite avanços e descobertas que, talvez, jamais seriam atingidos por
cientistas de pensamento totalizante, por consumirem décadas de pesquisas
absolutamente pontuais. O problema parece estar ligado ainda à definição de
totalidade como síntese de múltiplas determinações e a impossibilidade de
abordagem de todas as determinações em sua integral complexidade. Daí a divisão
dos cientistas em regiões da totalidade e a variação de concretude e abstração
conforme as determinações estão mais ou menos próximas da totalidade.
O prefácio destaca ainda a
superação das ideias acerca da petrificação da natureza, demonstrando seu
caráter histórico, tanto na transição da natureza inorgânica para a orgânica,
quanto no interior da própria natureza orgânica, com destaque para a
transformação das espécies e sua evolução. Engels aponta Kant como o precursor
dessa elaboração na filosofia, associando seu tratamento da questão da
historicidade da natureza com uma frase de Newton, que assim advertia seus
colegas: “Física, toma cuidado com a metafísica!”. A informação de Engels é
absolutamente curiosa porque mostra que Kant, que começa sua vida de estudos
como um naturalista para somente mais tarde dedicar-se à filosofia, pensava
sobre a natureza de forma oposta ao que pensava sobre o ser humano, já que se
destacou exatamente como um grande filósofo metafísico. O esforço de Engels é bastante interessante
também por revelar que, embora evidentemente exista um salto entre a natureza
orgânica e a inorgânica, as descobertas de que ele trata revelam que elas são
muito mais próximas do que se supunha anteriormente, inexistindo qualquer
abismo ou separação radical entre elas, que se encontram, na verdade,
participando de uma mesma historicidade, que mais tarde abrigará também o ser
humano, depois de outro salto.
“Com
o homem, entramos na história. Também os animais têm uma história: a de sua
descendência e desenvolvimento gradual até seu estado atual. Mas essa história
é feita para eles e, na medida em que eles mesmos dela participam, se realiza
sem que o saibam ou queiram. Os homens, pelo contrário, quanto mais se afastam
do animal, entendido limitadamente, tanto mais fazem eles próprios sua
história, correspondendo, cada vez com maior exatidão, o resultado histórico
aos objetivos previamente estabelecidos” (p. 26).
O trecho transcrito provoca o
debate teórico mais profundo contido no prefácio d’A dialética da natureza: o sentido da ideia de teleologia e suas
relações com o humanismo. Engels parece nesse trecho ser muito tributário da
ideia de teleologia histórica de Hegel, duramente criticada por Althusser em
seu A querela do humanismo. Lukács,
na Ontologia do ser social, também
identifica uma teleologia que caracterizaria o ser humano, redutível,
aparentemente, à própria elaboração marxiana sobre a famigerada diferenciação
entre “o pior arquiteto e a melhor abelha”. A questão é profunda, impossível de
ser esgotada neste breve relatório, que já dá como contribuição enunciá-la para
que paute leituras futuras: a teleologia de que falam Marx, Althusser e Lukács
é individual, ligada ao ideamento prévio que cada ser humano formula em sua
relação de transformação com a natureza, ou histórica, no sentido hegeliano, de
modo que a história humana seria uma história da progressiva liberdade,
entendida em sentido marxiano, como ausência de necessidade, tornando-se,
destarte, uma história da evolução das forças produtivas teleologicamente
orientada? A questão provoca ainda outra: existe primazia entre forças
produtivas e relações de produção na determinação histórica? Perceba-se que a
diferença de olhar sobre o tema provoca elaborações comumente tidas por
radicalmente diversas. Enquanto o foco nas relações de produção sobreleva o
papel da política e, portanto, afasta-se da teleologia, o foco nas forças
produtivas tende a provocar reflexões ligadas à exigência de um relativo grau
de afastamento do reino da necessidade para uma transformação da organização
social e das relações de produção, aproximando-se da ideia da teleologia da
liberdade.
Capítulo 1 (Natureza geral da dialética
como ciência)
O primeiro capítulo chama atenção
mais por sua ausência do que por sua presença. Tratando-se de texto manuscrito,
preparado postumamente para publicação por terceiros, encontra-se cheio de
anotações incompletas e para desenvolvimento futuro. Entre elas, a que abre o
capítulo: “Desenvolver a natureza geral
dialética como ciência das relações, em contraste com a metafísica”. Talvez
seja esse o grande texto não escrito do marxismo, embora tenha Althusser
assinalado em seu A favor de Marx a
desnecessidade de tal elaboração, diante do grande exemplo de sua realização
consubstanciado no próprio O Capital.
Ainda assim, duas questões
interessantes devem ser destacadas nesse trecho, em que Engels se dedica a
enunciar as três leis da dialética. A primeira diz respeito à transformação da
quantidade em qualidade, que ele faz acompanhar da expressão vice-versa. É bastante comum que textos
marxistas abordem a questão da transformação da quantidade em qualidade como
forma de manifestação da dialética, mas um pouco mais raro encontrar a
elaboração contrária, da transformação da qualidade em quantidade. Embora
Engels não se aprofunde nessa questão, parece que a dialética não pode
limitar-se a um dos sentidos dessa transformação, sob pena de incorrer justamente
na pior versão de uma teleologia histórica externa ao processo, no contexto da
discussão noticiada acima e contida no prefácio.
Outra questão curiosa se refere à
localização da dialética no pensamento hegeliano. Engels é explícito em afirmar
que Hegel estabelece as três leis da dialética “de acordo com sua concepção idealista, como simples leis do pensamento
(...). O erro consiste em que essas leis são impostas à Natureza e à História,
não tendo sido deduzidas como resultado de sua observação, mas como leis do
pensamento” (p. 34). É bastante claro que no pensamento marxista as leis
dialéticas são imanentes ao desenvolvimento histórico, sendo desnecessário
recorrer à problemática figura da inversão da filosofia hegeliana – Engels
recorre a esta elaboração neste trecho – para afirmá-lo. O que há de mais digno
de nota nessa passagem, entretanto, é o fato de que Engels identifica que o
próprio Hegel já teria deixado isso claro em sua obra, ao mostrar-se incapaz de
fornecer quaisquer exemplos das leis dialéticas que não se encontrassem na
natureza e na história.
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