terça-feira, 22 de outubro de 2013

Relatório de leitura e debate - 10/10

Relatório de leitura e debate
ENGELS, Friedrich. A Dialética da Natureza. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

Prefácio

               No prefácio de sua obra, Engels começa por chamar atenção para o fato de que, na passagem da Idade Média à Idade Moderna, os intelectuais eram caracterizados por uma leitura totalizante da realidade, dedicando-se igualmente a todas as ciências e às artes. O mesmo fato foi destacado também por Lukács em sua obra “A destruição da razão” (indisponível em português, mas acessível em sua edição espanhola: LUKÁCS, György. El asalto a la razón. Barcelona: Grijalbo, 1976.), na qual ele contrasta essa notável característica da ciência da era moderna com a acentuada divisão do trabalho que passa a caracterizar a produção científica a partir do século XIX, muito em função do surgimento e progressivo domínio do positivismo científico como fundamento epistemológico de toda essa produção.
               Uma questão bastante interessante surge desse contraste, principalmente no contexto de uma interpretação marxista da produção científica. Ela diz respeito à ligação que poderia haver entre o estado das forças produtivas da sociedade e a produção científica que a acompanha. Com efeito, Leonardo da Vinci, utilizado como exemplo por Engels em seu texto, vivia em uma sociedade de forças produtivas ainda bastante artesanais, o que permitiria que seu próprio modo de fazer ciência fosse artesanal e, por isso, com domínio de todo o processo de conhecimento. Com a progressiva implantação da divisão do trabalho como base das forças produtivas industriais, também as ciências cederiam a essa realidade, permitindo uma superespecialização do cientista. O debate relevante consiste justamente na identificação das vantagens e desvantagens dessa especialização excessiva, dessa divisão do trabalho sempre crescente, sobre a posição do intelectual totalizante, de que o último exemplo histórico talvez tenha sido o próprio Engels, ao lado de Marx. A questão é bastante complexa porque se, de um lado, a falta de visão de totalidade retira em grande medida a capacidade crítica do cientista, que passa a produzir conhecimento de forma desconectada de sua repercussão social e, pior, na maior parte dos casos atendendo a interesses ligados ao financiamento de sua pesquisa, por outro lado a superespecialização permite avanços e descobertas que, talvez, jamais seriam atingidos por cientistas de pensamento totalizante, por consumirem décadas de pesquisas absolutamente pontuais. O problema parece estar ligado ainda à definição de totalidade como síntese de múltiplas determinações e a impossibilidade de abordagem de todas as determinações em sua integral complexidade. Daí a divisão dos cientistas em regiões da totalidade e a variação de concretude e abstração conforme as determinações estão mais ou menos próximas da totalidade.
               O prefácio destaca ainda a superação das ideias acerca da petrificação da natureza, demonstrando seu caráter histórico, tanto na transição da natureza inorgânica para a orgânica, quanto no interior da própria natureza orgânica, com destaque para a transformação das espécies e sua evolução. Engels aponta Kant como o precursor dessa elaboração na filosofia, associando seu tratamento da questão da historicidade da natureza com uma frase de Newton, que assim advertia seus colegas: “Física, toma cuidado com a metafísica!”. A informação de Engels é absolutamente curiosa porque mostra que Kant, que começa sua vida de estudos como um naturalista para somente mais tarde dedicar-se à filosofia, pensava sobre a natureza de forma oposta ao que pensava sobre o ser humano, já que se destacou exatamente como um grande filósofo metafísico.  O esforço de Engels é bastante interessante também por revelar que, embora evidentemente exista um salto entre a natureza orgânica e a inorgânica, as descobertas de que ele trata revelam que elas são muito mais próximas do que se supunha anteriormente, inexistindo qualquer abismo ou separação radical entre elas, que se encontram, na verdade, participando de uma mesma historicidade, que mais tarde abrigará também o ser humano, depois de outro salto.

“Com o homem, entramos na história. Também os animais têm uma história: a de sua descendência e desenvolvimento gradual até seu estado atual. Mas essa história é feita para eles e, na medida em que eles mesmos dela participam, se realiza sem que o saibam ou queiram. Os homens, pelo contrário, quanto mais se afastam do animal, entendido limitadamente, tanto mais fazem eles próprios sua história, correspondendo, cada vez com maior exatidão, o resultado histórico aos objetivos previamente estabelecidos” (p. 26).

               O trecho transcrito provoca o debate teórico mais profundo contido no prefácio d’A dialética da natureza: o sentido da ideia de teleologia e suas relações com o humanismo. Engels parece nesse trecho ser muito tributário da ideia de teleologia histórica de Hegel, duramente criticada por Althusser em seu A querela do humanismo. Lukács, na Ontologia do ser social, também identifica uma teleologia que caracterizaria o ser humano, redutível, aparentemente, à própria elaboração marxiana sobre a famigerada diferenciação entre “o pior arquiteto e a melhor abelha”. A questão é profunda, impossível de ser esgotada neste breve relatório, que já dá como contribuição enunciá-la para que paute leituras futuras: a teleologia de que falam Marx, Althusser e Lukács é individual, ligada ao ideamento prévio que cada ser humano formula em sua relação de transformação com a natureza, ou histórica, no sentido hegeliano, de modo que a história humana seria uma história da progressiva liberdade, entendida em sentido marxiano, como ausência de necessidade, tornando-se, destarte, uma história da evolução das forças produtivas teleologicamente orientada? A questão provoca ainda outra: existe primazia entre forças produtivas e relações de produção na determinação histórica? Perceba-se que a diferença de olhar sobre o tema provoca elaborações comumente tidas por radicalmente diversas. Enquanto o foco nas relações de produção sobreleva o papel da política e, portanto, afasta-se da teleologia, o foco nas forças produtivas tende a provocar reflexões ligadas à exigência de um relativo grau de afastamento do reino da necessidade para uma transformação da organização social e das relações de produção, aproximando-se da ideia da teleologia da liberdade.

Capítulo 1 (Natureza geral da dialética como ciência)

               O primeiro capítulo chama atenção mais por sua ausência do que por sua presença. Tratando-se de texto manuscrito, preparado postumamente para publicação por terceiros, encontra-se cheio de anotações incompletas e para desenvolvimento futuro. Entre elas, a que abre o capítulo: “Desenvolver a natureza geral dialética como ciência das relações, em contraste com a metafísica”. Talvez seja esse o grande texto não escrito do marxismo, embora tenha Althusser assinalado em seu A favor de Marx a desnecessidade de tal elaboração, diante do grande exemplo de sua realização consubstanciado no próprio O Capital.
               Ainda assim, duas questões interessantes devem ser destacadas nesse trecho, em que Engels se dedica a enunciar as três leis da dialética. A primeira diz respeito à transformação da quantidade em qualidade, que ele faz acompanhar da expressão vice-versa. É bastante comum que textos marxistas abordem a questão da transformação da quantidade em qualidade como forma de manifestação da dialética, mas um pouco mais raro encontrar a elaboração contrária, da transformação da qualidade em quantidade. Embora Engels não se aprofunde nessa questão, parece que a dialética não pode limitar-se a um dos sentidos dessa transformação, sob pena de incorrer justamente na pior versão de uma teleologia histórica externa ao processo, no contexto da discussão noticiada acima e contida no prefácio.
               Outra questão curiosa se refere à localização da dialética no pensamento hegeliano. Engels é explícito em afirmar que Hegel estabelece as três leis da dialética “de acordo com sua concepção idealista, como simples leis do pensamento (...). O erro consiste em que essas leis são impostas à Natureza e à História, não tendo sido deduzidas como resultado de sua observação, mas como leis do pensamento” (p. 34). É bastante claro que no pensamento marxista as leis dialéticas são imanentes ao desenvolvimento histórico, sendo desnecessário recorrer à problemática figura da inversão da filosofia hegeliana – Engels recorre a esta elaboração neste trecho – para afirmá-lo. O que há de mais digno de nota nessa passagem, entretanto, é o fato de que Engels identifica que o próprio Hegel já teria deixado isso claro em sua obra, ao mostrar-se incapaz de fornecer quaisquer exemplos das leis dialéticas que não se encontrassem na natureza e na história.


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